"Eu estou constantemente dividido entre me matar e matar todos à minha volta."
Tentei desviar o olhar, mas não consegui. Minha própria dose de sadismo me fazia querer ver cada detalhe do ato. Sou curioso. Assim como você, leitor, que percorre com avidez estas linhas, eu queria saber exatamente o que iria acontecer. Por mais macabro que fosse. Por mais louco. E eu não me importo. Não se importe você também. Ninguém está olhando... Ninguém vai nos condenar por estes segundinhos de sordidez...
No Clube do Livro que frequento, em Campo Grande/RJ, Dias Perfeitos, de Raphael Montes, foi a mais recente obra analisada e o próprio escritor marcou presença no dia. Mesmo sem ter lido o dito cujo, aproveitei a ocasião e saí de lá ávido pela leitura, ainda que já soubesse todo o enredo. Dessa forma, optei por dar vazão ao Suicidas, seu romance de estreia, e logo nas primeiras páginas já pude perceber que não iria me arrepender, tampouco usufruir de uma experiência totalmente sã.
A morte é apenas uma das formas desta triste partida. Existem outras. Piores.
Um porão, nove jovens e uma Magnum 608. O que poderia ter levado universitários da elite carioca - e aparentemente sem problemas - a participarem de uma roleta-russa? Um ano após o trágico evento, que terminou de forma violenta e bizarramente misteriosa, uma nova pista, até então mantida em segredo pela polícia, ilumina o nebuloso caso. Sob o comando da delegada Diana Guimarães, as mães desses jovens são reunidas para tentar entender os motivos e o que realmente aconteceu. Por meio da leitura das anotações feitas por um dos suicidas durante o fatídico episódio, serão submersas no turbilhão de momentos que culminaram na morte dos seus filhos. A reunião se dá em clima de tensão absoluta, verdades são ditas sem a falsa piedade das máscaras sociais e, sorrateiramente, algo muito maior começa a se revelar.
Nunca pensei que meter um tiro na cabeça chamasse tanta atenção. No dia em que eu quiser aparecer na mídia, é só pegar um revólver e pipocar meu cérebro. Vou me lembrar disso.
A escrita de Raphael é tensa, facilmente imersiva e limpa de quaisquer caguetes narrativos. As frases diretas e a falta de floreios exemplificam ainda mais seu talento não apenas como contador, mas arquiteto de uma história complexa, intrincada e de um ritmo frenético. Os três tempos narrativos - as anotações pré e durante a roleta-russa, além da gravação da reunião das mães - convergem de forma brilhante, tecendo uma mesma narrativa que se completa fora da ordem casual. Vamos, voltamos e paramos ao bel prazer do autor, ansiosos com os ganchos bem bolados e pontuados ao final de cada capítulo. As páginas correm, o leitor agoniza e o conto se sobressai.
Há algo de interessante na relação entre catástrofe e notícia. Quero dizer, quando um avião cai e morrem duzentas pessoas, misteriosamente, milhares de quedas de avião ao redor do mundo são noticiadas na semana seguinte. O mesmo acontece com crianças violentadas, balas perdidas e tufões que derrubam as casas dos norte-americanos. Depois, tudo se amorna. O assunto passa a ser outro, a queda de um avião em um lugar distante nem é mais tão chocante assim. Tudo é normal. Rotineiro.
É tremenda a dificuldade em apontar algum protagonismo em Suicidas que não seja o da trama em si. Os personagens conseguem pontuar positivamente momentos de aprofundamento, uns bem mais que outros, porém mesmo esse desnível é compreensível e funciona com o livro. Eles são palpáveis, embora alguma impressão de estereótipo possa florescer, mas não seria difícil reconhecer tais fenótipos no dia-a-dia. Pelo caminho que Raphael se propõe a levar o leitor, certas figuras-chave, como aquele que faz as anotações antes e durante a tragédia e seus amigos mais próximos acabam por se destacar - e não sem propósito. Confesso que gostaria de saber mais sobre determinados personagens, como Otto e Ritinha, o que poderia ser abordado, talvez, sem tirar o foco das tais figuras que mencionei. Não há lacunas, veja só, apenas a curiosidade de alguém que poderia, sem pestanejar, mergulhar no universo de Montes ad astra et ultra.
[...] quando deixamos de ser humanos? Quando nos tornamos esses monstros armados e delinquentes? Como umas doses de álcool, alucinógenos e um porão abafado puderam nos transformar em seres tão pífios? E, sim, eu me incluo no grupo.
Chega a ser divertido, apesar da temática, a maneira como o enredo testa o ledor. Várias abominações são anunciadas, surpresas são quebradas e, quando você vira a página, exatamente aquilo que foi prometido acontece. Aprecio especialmente essa interatividade e, em especial quando um livro consegue alçar o leitor a tantas gamas reacionais, como Raphael explicita em sua obra. Há riso, choro, dor, sofrimento, horror, suspense e, dependendo do ponto de vista, mesmo romance. Ao meu ver, isso é literatura; uma arte tal qual uma canção que toca quem a ouve, um filme que engole a atenção e a segurança do espectador, uma dança que inspira e surpreende pelos revés, dentre tantas outras vicissitudes. Suicidas é um prato cheio desse espetáculo.
OLÍVIA – Hipócritas! (GRITANDO) Vocês são todas hipócritas! (PAUSA) Eu apenas digo o que todas vocês têm vontade de dizer. (PAUSA) Ou vão falar que têm orgulho dos seus filhos suicidas? (RISO SECO) Suponho que seja a primeira coisa que vocês contam ao falar de si mesmas... O meu filho se suicidou, e eu tenho tanto orgulho disso! Faça-me o favor! Não sejam patéticas!
Os capítulos anteriores à roleta-russa dão boas respiradas no fluxo quase assustador de acontecimentos e declarações, porém fica bastante evidente o pretexto de segurar quem lê até o trecho seguinte dos relatos em tempo real da tragédia. Embora admire bastante a escrita nada prolixa do autor como o aspirante a escritor que sou, talvez essa diegese pudesse ser feita mais suavemente, de um modo menos aparente. O exemplar físico tem uma diagramação confortável aos olhos, mas a fonte não é das maiores e o material externo de capa é facilmente suscetível a marcas. Ainda assim, é de um trabalho belíssimo ao vivo.
Nós somos como todo mundo. Uma família buscando a tranquilidade, aparentando um bem-estar volátil, os problemas pairando sobre nossas cabeças. Tentamos ser felizes, viver momentos inesquecíveis, poéticos, cinematográficos. Mas não dá. Simplesmente não dá.
Suicidas foi uma espécie de livro que me fez atravessar folhas, adiantar obrigações para retornar à leitura e atingir um ápice de reações - da incredulidade a um ataque de risos, sem exageros - com o final estarrecedor. O plot twist tão bem guardado explode de tal forma que, depois de terminá-lo e se recompôr, permanecemos nos perguntando como alguém pode sequer pensar em uma obra assim. Sinto por não fazer jus ao quanto gostei da leitura e como ela precisa ser lida, contudo resenhas de bons livros jamais ficarão à altura de suas inspirações. A você que acompanhou até aqui: corra e adquira esse primor nacional o mais rápido possível e não se esqueça de me contar suas impressões. Ao Raphael: parabéns, acaba de adquirir um leitor bastante fiel.
Eu sempre escrevi histórias policiais, mas elas só têm graça, para mim, no campo da ficção. Perceber a realidade pode ser muito doloroso.
Título: Suicidas.
Autor: Raphael Montes.
Editora: Benvirá (Série Negra).
Número de Páginas: 488.
Caíque, suas resenhas são sempre as melhores! Entendo a sensação de não conseguir passar tudo que quer na resenha de um livro que gostamos, acho que todo blogueiro entende! Hahaha' E tenho certeza que quando eu fizer a minha também não vou conseguir passar metade das sensações que tive com esse livro.
ResponderExcluirEu amei o livro, amei sua resenha, parabéeens! *-* Que venha logo Jantar <3
Preciso do "Jantar" pra ontem, Nanda, ainda bem que você me entende xD
ResponderExcluirObrigadissimo pelos elogios, é uma fofa mesmo. Fico muito feliz que tenha gostado, porque conforme comentou, é cada vez mais difícil ficar satisfeito com as limitações de uma resenha pra contar tudo que sentimos com determinada obra. Chega a ser injusto às vezes, até. Bom, tô doido pra ler seu parecer também, não demora pra publicar, hein? hahaha
Beijão e valeu por sempre comentar!
quero ler nas férias. ;)
ResponderExcluir