Um dos conceitos fundamentais no estudo do teatro é o de catarse. O Dicionário Aurélio define esse termo como sinônimo para o efeito que algumas tragédias clássicas proporcionavam a seus espectadores, trazendo à tona os seus mais profundos sentimentos de piedade, terror e identificação - e, daí, proporcionando-lhes uma forte sensação de alívio. Com o passar dos anos, esse termo passou a ser aplicado também ao estudo da literatura, tendo em vista que muitos livros possuíam tanto impacto quanto algumas das peças shakespearianas, sendo capazes de atordoar e chocar seus leitores, tirando-lhes o ar. Se você já leu uma obra com poder catártico, deve conhecer bem a sensação. Se não leu e não sabe onde diabos encontrar uma, vou lhe dar uma dica: Dupla Falta, de Lionel Shriver.
A autora tem uma preferência notável por temas obscuros e uma forte paixão pela quebra de tabus. Em Precisamos falar sobre o Kevin, acompanhamos o relato da mãe de um pequeno psicopata que assassinou uma dezena de pessoas em sua escola, e temos a chance de, junto a ela, desnudar todos os paradigmas da maternidade. Em O mundo pós-aniversário, por outro lado, somos convidados a conhecer a excruciante dúvida de Irina, uma desenhista de livros infantis que se vê dividida entre a base sólida da fidelidade matrimonial e as aventuras imprevisíveis do adultério. Agora, em Dupla Falta, Shriver lança mão da sua sinceridade de sempre, mas com um estudo de caso ainda mais interessante: a autora nos convida a percorrer todos os pormenores de um casamento recheado de rivalidade e competitividade.
Em vez de se aborrecer consigo mesma, na parte essencial do set, aos 2-3, Willy ponderou que talvez estivesse jogando, à toa, o melhor tênis de sua vida.
O melhor não era bom o bastante.
Willy Novinsky e Eric Oberdorf constituem um casal de tenistas profissionais, igualmente dispostos a atingir as mais altas colocações em seus respectivos rankings. Todavia, os dois possuem personalidades e históricos bastante diferentes: enquanto Eric é graduado em Matemática por uma das mais conceituadas universidades americanas e tem uma capacidade incrível de mudança de foco, podendo transferir toda a sua energia de um objetivo a outro em questão de segundos, Willy dedica-se integralmente ao tênis desde os cinco anos de idade, tendo abdicado de mil e um futuros em prol do esporte. Ambos, contudo, são competitivos e perseverantes.
Foi nesse cenário que Shriver enxergou a possibilidade de plantar uma semente de questionamento, uma erva daninha em meio ao jardim de companheirismo e cumplicidade que supostamente é o casamento. Com o passar dos meses e dos anos, Willy começa a perceber, no companheiro que inicialmente se mostrara apenas razoável no tênis, uma tendência cada vez maior à vitória, uma ascensão da habilidade esportiva e, sobretudo, uma falta de preocupação assustadora. Ela, que sempre considerara a quadra de tênis como o hábitat de sua alma, se vê superada por alguém que encara o esporte como uma diversão fugaz, um entretenimento efêmero.
- Por que você não consegue imaginar uma relação em que os dois sejam bem-sucedidos?
- Bela fantasia, mas não serve de nada. Você tem alguma noção de como é ver a pessoa com quem você vive conseguir tudo o que você deseja? Dinheiro, troféus, aplausos, um futuro... enquanto eu me afundo em dívidas. Como você se sentiria se fosse exonerado, ou seja lá o que acontece a vocês [psicólogos], enquanto sua esposa vai para o consultório todos os dias e ganha algumas centenas de milhares por ano como terapeuta esportiva?
Se não um exercício de observação tremendamente angustiante, Dupla Falta é uma experiência de transgressão, um convite a vestir uma segunda pele. A palavra-chave é verossimilhança: as situações criadas pela autora são bastante palpáveis; em vez de vampiros e lobisomens, temos jantares em família e derrotas em campeonatos - ocasiões menos lúdicas, mas igualmente letais. A narrativa é em terceira pessoa, mas está longe da imparcialidade, sendo impiedosa em relação às emoções de Willy, que são minuciosamente descritas e metaforizadas.
- Eu te amo, meu bem. Não ligo se você ganha torneios.
- Isso é amor? Minha carreira não importa?
- Só importa para mim porque importa para você. Se isso te ajuda... Eu vou ao Tanqueray. Para te apoiar.
- Você vai estar na Europa.
- Eu volto.
Ela não teve coragem de lhe dizer que sua presença na lateral da quadra era como criptonita.
Entretanto, atenção: esse é um livro que requer maturidade. A beleza da obra está justamente na capacidade de Shriver de (re)descobrir as particularidadades do cotidiano de seus personagens, e a todo momento brotam reflexões de cenas rotineiras. Vi uma resenhista dizer que a autora pecou na sua escolha de palavras, muitas vezes empregando termos difíceis. Ora, sinceramente. Se ter um conhecimento amplo sobre a sua língua e usar tal conhecimento para descrever suas cenas da melhor forma possível é pecar gramaticalmente, então eu preciso rever meus conceitos. Dupla Falta não é ininteligível: é completo.
Por fim, eu tenho um pedido: se você se considera uma pessoa madura (e eu acredito que você o seja), não deixe de ler esse livro apenas porque você costuma dialogar mais com outros tipos de literatura. Abra um espaço em sua mente e em sua mesa de cabeceira para essa crônica moderna mas atemporal, cruel mas realista. Não importa se você não sabe as regras do tênis. Como disse a própria autora, o livro não é tanto sobre tênis quanto é sobre casamento, um esporte um pouquinho diferente.
E eu duvido que você se decepcione.
Título: Dupla Falta.
Autora: Lionel Shriver.
Editora: Intrínseca.
Número de páginas: 368.
Avaliação: 5 de 5.
Opa agora vou conhecer um pouco a respeito dessa autora que o Robledo tanto fala.
ResponderExcluir"Se ter um conhecimento amplo sobre a sua língua e usar tal conhecimento para descrever suas cenas da melhor forma possível é pecar gramaticalmente, então eu preciso rever meus conceitos. Dupla Falta não é ininteligível: é completo."
Isso nada mais é do que a falta de conhecimento e falta de ler livros mais elaborados gramaticalmente.
A resenha muito bem feita e o enredo que trás várias reflexões a partir de um tema que interessa a muitos (senão a maioria rsrs), promete muito.
Gostei muito!
Beijos
BabihGois
http://babihgois.blogspot.com
P.S.: Pensando aqui com os meus botões, acredito que a competição dentro de uma relação matrimonial acaba com a mesma, ainda mais se os cônjuges não sabem ao certo como lidar com tal situação. Por isso que aquela frase "Os opostos se atraem" é sempre uma boa pedida. Nada de competição.
Lembrei de uma coisinha, adorei o título do livro: "Dupla Falta", tanto no esporte quanto no casamento? A rede caída também combinou muito.
ResponderExcluirVou add no skoob, torcendo para surgir uma oportunidade de lê-lo.
Beijosss
BabihGois
http://babihgois.blogspot.com
Nossa..intenso O.o gostei mt dos trechos que escolheu para falar do livro e me interessei bastante!
ResponderExcluirParabéns pela resenha!
Bjos
Raffa Fustagno
http://livrosminhaterapia.blogspot.com/
Robledo,
ResponderExcluirEssa sua paixão pela escrita da Shriver apenas aumenta a qualidade das suas resenhas.
Catártica, não me restam dúvidas de que é um bom adjetivo para classificar a obra dela que eu, sem sequer ter lido, sinto já conhecer há tanto pelas suas palavras.
"Dupla Falta" aborda um tema bastante delicado, sem dúvidas, e fico admirada, pelas próprias quotes ao conduzir de sua resenha, com a essência do texto da autora.
Tenho prezado muito a verossimilhança do que leio pois, creio que, afinal, o grande trunfo dos bons escritores é saber criar personagens reais, com defeitos e qualidades, mais palpáveis e humanos e estou certa de que Shriver é dotada excessivamente desta qualidade.
Com mais uma ótima resenha, vou ter que acabar comprando um livro dela ainda neste ano...
Beijos,
Ana - Na Parede do Quarto
Nossa, que resenha fantástica!
ResponderExcluirMe interessei bastante pelo livro e pela autora, mas um que entra pra minha lista de próximas leituras.
Beijos!
http://ehproibidonaoler.blogspot.com
Oi, Robledo!
ResponderExcluirSua admiração pela Shriver muito me encanta, e seus comentários me deixaram com muita vontade de conhecer a escrita e os contos da mesma.
Este livro, por exemplo, me parece muito interessante. Às vezes as pessoas não dão um devido conhecimento por estarem sujeitas a ler uma única espécie de livros, com uma única temática. Por isso é importante estarmos sujeitos a diversos tipos de leituras, e que possamos reconhecê-la pelo que de fato ela é.
Parabéns, sua resenha está excelente... extremamente completa. Acredito que a nota 5 foi digna pela grandiosa obra que acabastes de nos mostrar.
Beijos. :*
http://universoliterario.blogspot.com/
Seu blog é ótimo! Amei ♥
ResponderExcluirEu já estava querendo ler "Dupla Falta", com essa resenha fantástica quero mais ainda :D
Seguindo com todo prazer viu?
Abraços,
http://tudosobresentimento.blogspot.com
Esse parece ser um livro bom, mas não acha que eu consiga lê-lo. Parece ter uma assunto que faria eu empacar. Acho que prefiro mais drama e mais ação. Mas essa altora parece ser realmente boa. Adorei a sua resenha.
ResponderExcluirBeijos, Julia
Tijolinha, Books & Fanfics
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Oiee!
ResponderExcluirMuito boa a tua resenha!!
E te falar que eu não conhecia sobre esse livro!
Mas juro que tua resenha me interessou bastante para começar a leitura.
Nem tenho preconceito com tênis, um dos meus filmes favoritos tem assunto tênis, envolvido HAHA
bjs e bom domingo
Nana - Obsession Valley
Vim retribuir a visita e o comentário em meu blog e me deparei com uma resenha incrível!
ResponderExcluirPrimeiro de tudo, eu não sabia que a autora desse livro é a mesma de "Precisamos falar sobre Kevin". Eu não li nenhum dos dois, mas tenho muita vontade de fazê-los.
"Precisamos falar sobre Kevin" é um que espero ler em um momento de equilívrio, pois imagino não se tratar de uma leitura fácil, muito pelo contrário, tenho certeza de que é um livro denso. Sabendo disso, tenho certeza de que "Dupla Fatal" não foge à regra.
Como você, não acho que utilizar um vocabulário amplo seja um erro. Existem diversos estilos diferentes de livros por ai e acredito que seja ótimo ampliar o gênero literário de vez em quando para algo mais elaborado, simplesmente para evitar que nossa compreensão não fique limitada ou acostumada ao mais simples. E olha que eu amo chick-lits e YA!
Deixando minha opinião de lado, o livro parece ser excelente, do estilo para se ler com calma e não simplesmente para passar o tempo ou por distração.
E, novamente, parabéns pela resenha!
Está muito bem escrita e muito bem estruturada!
Já estou seguindo o blog!
Beijos!
Meu deus Robledo, pare com essas resenhas espetaculares de tirar o fôlego, assim eu quase morro u_u
ResponderExcluirUEHUEUEHUHEUHEUHUE \o
Pelo jeito todos já sacaram o seu amor pela Lionel né? hahaha, impossível não perceber o quanto você a admira... e sinceramente, se você admira, eu admiro, porque eu sei como é difícil um livro receber 5 de você e a Lionel sempre recebe.
Preciso dizer que não consegui ler "Precisamos falar sobre o Kevin" durante as férias... fiquei no computador, hahaha, mas, ainda irei ler e com certeza falarei de você na minha resenha, UHEUHEHUE =)
Sério, não tem como olhar para um livro da Lionel e não lembrar de você.
Dupla Falta parece ótimo e caso eu leia, terei a maior maturidade possível, prometo, haha *-*
Lionel Shriver é uma das melhores escritoras da atualidade. Acho "Precisamos Falar sobre o Kevin" a grande obra dela. Também já li "O mundo pós-aniversário" e posso dizer que a narrativa da Lionel é de uma fineza e precisão absurda. Estou louca para ler "Dupla Falta" também.
ResponderExcluirUm beijo
Francine Ramos
Quando vi o título, nunca ia imaginar que era sobre um assunto tão profundo. Adorei a resenha e entrou pra minha wishlist, com certeza. ultimamente tô mudando um pouco o tipo de livros que leio e esse me encantou totalmente *-*
ResponderExcluirU.A.U.
ResponderExcluirEu já disse como as resenhas deste blog nos dão vontade de escrever?
Robledo, fascina-me o seu poder de crítica no momento de resenhar um livro. E Lionel Shriver tem um quê a mais, não é? ^^
Adorei ler a resenha e apesar de curtir mais os livros que mostram o processo de amadurecimento em si, as fases de transição, eu fui atraída a Dupla Falta pelo fato de mostrar um outro aspecto que sempre me deixa indignada: a competitividade em casamentos, que considero uma das nódoas da sociedade moderna; se por um lado, esta prega o "casamento pelo amor, e não pelos dotes de antigamente", por outro existe a liberdade feminina, que já não fica em casa, mas busca um lugar no mercado, cresceu nos esportes. Mas pelo que entendi, o sentimento de rivalidade parte da esposa, não é? Interessante. Sem dúvida, o livro entrou na lista, ainda mais com uma nota 5!
Quanto aos termos mais difíceis, que comentário esquisito para uma resenhista, não? Dicionários existem para colaborar na leitura e escrita, não criar poeira na estante. O meu, certamente, nunca para no canto, é um dos meus melhores amigos hehe.
=)
Beijos, Robledo (e Caíque também). Vou ler as demais resenhas de Lionel!
=**
This