[Resenha] Lionel Shriver - Tempo é dinheiro

Tenho um histórico muito positivo com Lionel Shriver. Esbarrei no trabalho da autora por acidente, no início do ano passado; e, desde que li os primeiros capítulos de Precisamos falar sobre o Kevin (visto pela crítica como a obra-prima de Shriver), encantei-me de forma absoluta com a perspectiva analítico-existencial que parece permear todos os parágrafos redigidos pela autora. Após Kevin, li O mundo pós-aniversário e Dupla Falta, e meu entusiasmo relacionado ao trabalho de Shriver permaneceu intacto em sua força e vivacidade. Na parte mais recente dessa trajetória, deparei-me com Tempo é dinheiro - que, pelo menos de acordo com a sinopse, pareceu-me um livro fiel à tradição literária da autora: o hábito cruel de discutir tabus e expor as partes da sociedade onde 1 + 1 nem sempre resulta em 2.

Tempo é dinheiro expõe a vida do casal Shep e Glynis: ele, maléavel como a água; ela, dotada de uma fixação pelos atributos dos materiais metálicos. Desde seus primeiros insights referentes ao funcionamento do universo econômico, Shep mantém um pé-de-meia que, de acordo com a filosofia do sujeito, um dia lhe permitirá viajar definitivamente para um país distante, onde poderá viver sem preocupações e sem horas perdidas no trânsito. Glynis, em contrapartida, conquanto não esmague todas as ideias do marido, constantemente elenca obstáculos que impediriam o casal de passar a "Outra Vida" em determinadas localizações.

 Apesar da tolerância inerente ao seu temperamento, Shep nutriu seu sonho por tempo demais: em uma sexta-feira aleatória, ele expõe a Glynis os bilhetes (só de ida) que os levarão à ilha da Outra Vida em poucos dias, e fornece-lhe um ultimato: Shep garante que irá com ou sem a esposa. Glynis, então, decora o próprio rosto com um sorriso amarelo e revela que foi diagnosticada como portadora de um câncer mortífero e raro - algo cujo tratamento demandará quantidades exorbitantes de tempo e, sobretudo, dinheiro.

Isso porque, diante de um câncer violento, eles não iriam simplesmente seguir instruções e reunir seues recursos de força de vontade: iam comprar a vida. Comprariam a vida de Glynis, um dia custoso após o outro, e no fim, seria possível pôr uma etiqueta de preço em cada um.

Conforme eu disse anteriormente, a premissa de Shriver é fantástica. Assim como Kevin discutiu os pormenores filosóficos e existencialistas da maternidade, eu esperava que Tempo é dinheiro focasse no conflito entre o desejo de libertação de Shep e o dever de ajudar a esposa, tecendo uma trama quase romântica. Não posso dizer que a autora negligenciou essa abordagem completamente, mas tampouco posso afirmar que é em volta desse eixo que o livro gravita. Leitores não familiarizados com a obra de Shriver, além de naturalmente encontrarem certa dificuldade na linguagem da autora, poderão sentir tédio perante a semelhança entre muitas partes desse livro e um documentário. Discutem-se minuciosamente os erros do sistema de saúde americano, e em vários momentos a crítica estende-se a outras áreas. O trecho abaixo, encontrado já no quinto capítulo, exemplifica isso:

É que agora, na opinião de Jackson, o governo era uma empresa com fins lucrativos, mas de um tipo com que o magnata médio da indústria só podia sonhar: um monopólio natural, capaz de cobrar o que quisesse, mas sem a obrigação de oferecer em troca nenhum tipo de produto. (...) Dado que, por definição, todos os políticos "mamavam nas tetas", nenhum deles tinha qualquer motivação para limitar o tamanho dessa maravilhosa companhia que, na verdade, não era obrigada a produzir nada.

O leitor que se interessar pela crítica política de Shriver (ou que não desistir do livro em função desta), entretanto, certamente terá a chance de testemunhar a elegância literária da autora. De acordo com a sua tradição, Shriver não faz uso de metáforas aladas e imagens românticas, mas associa as emoções de seus personagens a elementos do cotidiano, a peças da mobília e a ações rotineiras. A letalidade da obra reside na lenta e realista descrição das emoções de cada um: não seria verossímil, por exemplo, que Shep imediatamente se esquecesse de todos os sonhos relacionados à Outra Vida após um dia do tratamento de Glynis. Com o decorrer da obra, o desmoronar de um sonho tão cuidadosamente edificado continua atormentando-o, e a maneira como Lionel desenha essa batalha interna revela maestria e - apesar do estilo naturalmente seco da autora - sensibilidade.

Apesar dos pontos positivos da obra, é recomendação minha que alguém interessado em conhecer o trabalho de Shriver adie um pouco a leitura de Tempo é dinheiro, começando por Precisamos falar sobre o Kevin ou Dupla Falta. O livro aqui resenhado não tem tanta força quanto as demais produções literárias da autora, e, embora ofereça amostras de seu talento, dificilmente convidará o leitor a desbravar as demais histórias escritas pela autora (publicadas, no Brasil, pela Intrínseca). Tempo é dinheiro exige paciência, concentração, e um pouco de conhecimento prévio acerca dos temas abordados: eu mesmo, confesso, me senti perdido durante algumas das explicações da autora. Apesar do tom de ódio que certamente norteia a obra e que acaba por desviar o foco da bela questão "Quanto custa uma vida?", creio que a leitura vale a pena.

Nessa noite, Glynis encolheu-se no seu lado da cama, assumindo a mesma posição de quando estivera grávida. Shep colocou-se bem perto, por trás dela, cônscio de ter ficado receoso de tocar seu abdômen, mas intuindo que era preciso resistir a essa evasiva instintiva. Sentia-se diferente da mulher. Não era por causa de Pemba; não era a Forge Craft. Era que o que estava para acontecer com Glynis não estava para acontecer com ele. Aproximou-se mais, porque ela sentiria a distância entre os dois. Mas, quando pôs delicadamente a mão em sua barriga, com igual delicadeza ela se afastou.

Título: Tempo é dinheiro.

Autora: Lionel Shriver.

Editora: Intrínseca.

Número de Páginas: 462.

Essa resenha foi minha última contribuição ao LLM. Obrigado a todos pela companhia durante todo esse tempo, e até mais.