terça-feira, 6 de março de 2012

[Resenha] Daphne du Maurier - Rebecca

Quando Hitchcock adaptou Rebecca para o cinema, em 1940, insistiu que o filme fosse feito em preto e branco. Segundo o diretor, essa atitude visava a conservar a atmosfera sombria da história, o clima que lhe garantia tanta peculiaridade. Ao menos nesse ponto, Hitchcock curvou-se à maestria de Daphne du Maurier, reconhecendo que suas mãos e sua mente haviam garantido à obra um tom de mistério que, definitivamente, precisava ser transmitido às telas. Hoje, mais de setenta anos depois, ainda é possível ler Rebecca - livro considerado a obra-prima de Du Maurier - e sentir a mesma atmosfera taciturna e sensualmente traiçoeira. Atemporal e resistente às mudanças de costumes, Rebecca consolidou-se como uma espécie de clássico do suspense romântico, tendo sido traduzido para várias línguas - dentre as quais, felizmente, encontra-se o Português.

O livro é narrado em primeira pessoa, sob a perspectiva de uma narradora cujo nome nunca é mencionado. À guisa de prólogo, os primeiros capítulos possuem um tom experiente no qual a protagonista fala com saudosismo sobre Manderley, a propriedade na qual viveu com seu marido, Max de Winter. Percebemos que houve algo que a impede de retornar à suntuosa mansão, mas não temos a mínima ideia do que pode ter acontecido. Somos então convidados a um poético passeio pela vida da narradora, de sua trajetória no sul da França à sua chegada e permanência em Manderley - tudo isso permeado pelo ressoar de um nome austero, escrito em letras negras na mente de todos: Rebecca.
É engraçado, pensei, como a rotina da vida persiste e, aconteça o que acontecer, fazemos sempre as mesmas coisas: comemos, dormimos, tomamos banho e nos vestimos. Nenhuma crise da existência rompe a força do hábito.
Indubitavelmente merecedora do título da obra, Rebecca é a ex-exposa de Max de Winter, uma mulher cuja argúcia todos admiravam; uma dama nobre que parecia ser capaz de agradar a todos. Rebecca morreu em um acidente na costa marítima de Manderley, e o casamento entre Max e a protagonista - que assume o lugar de Rebecca como Mrs de Winter - deu-se dez meses depois da fatídica tragédia. Embora Rebecca tenha morrido, sua influência ainda pode ser sentida por todos os corredores da grande propriedade: os criados ainda agem conforme suas antigas vontades; todos esperam que a protagonista comporte-se como Rebecca o fazia; o próprio Max parece sentir-se desconfortável à simples menção do nome da ex-mulher. Não há fantasmas ou criaturas sobrenaturais envolvidas: há reminiscências e feridas abertas.

Agradou-me muito o tom de Daphne du Maurier. Suas descrições beiram a perfeição, e engendrar uma atmosfera de expectativa parece-lhe a coisa mais fácil do mundo. Acompanhamos a adaptação da narradora à nova vida e testemunhamos cada fase do seu amadurecimento, sempre em um ritmo que deixa a crer que uma reviravolta pode acontecer a qualquer momento. Nem todos recebem a nova Mrs de Winter de braços abertos. Alguns não derramariam tantas lágrimas caso ela acidentalmente se afogasse. Alguns não conseguiam aceitar a partida de Rebecca. Há algumas surpresas no livro, mas eu acredito que a leitura vale muito mais a pena pelo tom que a obra assume - a graça não é a reviravolta em si; a graça é a consciência de que tudo pode mudar quando você menos espera.
Do terraço eu poderia distinguir o ronco do mar lá longe , abafado e taciturno. Rumor monótono, obstinado, que não cessava nunca. Fugiam para terra as gaivotas, acossadas pelo mau tempo. Escoaçavam à volta da casa, em círculos, gritando, agitando as asas. Comecei a compreender por que muita gente não pode suportar o clamor do oceano. É que a nota queixosa e repetida, a persistência dela, o eterno arfar e os roncos sibilantes exercem efeito irritante sobre os nervos.
Assim, em vez de apaixonar-me pela história, apaixonei-me pela maneira como Daphne du Maurier pintou os sinistros rododendros que cingiam Manderley, e também pela forma como desnudou todos os tormentos internos de sua protagonista. A nova Mrs de Winter é vinte anos mais nova do que seu marido e, apesar de toda a atmosfera funérea ao seu redor, ainda tem os anseios da juventude: ainda quer que seu marido - estranhamente reticente em relação ao acidente de Rebecca - esqueça a ex-mulher e a ame com toda a ardência de uma paixão pueril. Os conflitos entre as agitações misteriosas de Manderley e o turbilhão de emoções da narradora é um dos pontos altos de Rebecca, merecendo todo o destaque que já lhe foi dado por outros resenhistas.

Em seu destaque dado às convenções sociais, talvez Rebecca lembre os trabalhos de Jane Austen. Entretanto, Daphne du Maurier vai além, tomando emprestadas a feição sinistra das obras de Allan Poe e a inclinação de Baudelaire ao tema gótico. O livro exige certa carga de maturidade e de concentração, mas é uma excelente leitura, especialmente recomendada àqueles que desejam dar o primeiro passo rumo a uma literatura mais adulta. Rebecca é um romance sobre apego ao passado e mentiras, mas também é uma aula sobre máscaras, ciúmes e amor. E há toda a beleza do mundo em ler o livro inteiro e, só então, reler os dois primeiros capítulos, entendendo-os completamente. No segundo capítulo, a narradora diz: Cada um de nós tem o seu demônio, que nos instiga e atormenta, e a quem temos que dar combate. Eu e ele vencemos o nosso, ou pelo menos assim me parece. O demônio não mais nos persegue. 

Vamos. Aceite o convite de Daphne du Maurier. Permita que o oceano e as páginas deste livro lhe sussurrem, suavemente, o nome de Rebecca. Não creio que haja outra personagem famosa da literatura com esse nome - assim como há uma única Julieta, um único Heathcliff e uma única Capitu, há uma única Rebecca. Não há como fazer confusão. Não há como esquecer-se dela.
Eu a conhecia agora, as pernas longas e bem feitas, os pequenos e delicados pés. Ombros mais largos que os meus, mãos inteligentes e débeis. Mãos que sabiam governar um barco, que podiam sofrear um cavalo. Mãos que arranjavam flores, construíam modelos de navios e escreviam "A Max, Rebecca", na página branca de um livro. (...) E se entre centenas de outras eu ouvisse sua voz, saberia reconhecê-la. Rebecca, sempre Rebecca! Eu nunca me livraria de Rebecca.

Título: Rebecca.
Autora: Daphne du Maurier.
Editora: Abril Cultural.
Número de Páginas: 396.
Avaliação: 4 de 5.

9 comentários:

  1. Olá

    Gostei da capa com esse jeito de década de 50 e gosto desse nome Rebeca mas sempre me remete ao povo judaico onde esse nome é muito comum . Acho o lindo e por conjunto desses dois fatores me interessei pela obra que confesso nem sabia que existia...e me julgava fã do diretor.
    Agora nao sei se corro para o livro ou para o filme..rs
    Mistério é sempre bom, gosto do tema que envolve e nos faz querer ler mais e mais para saber o final.
    Ótima resenha! Parabéns pela escolha de um livro diferente quando noventa por cento dos blogs parece ter "escolhido"o mesmo livro para ser resenhado

    Bjos
    Raffa Fustagno
    http://livrosminhaterapia.blogspot.com/

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  2. Olá Robledo!
    Confesso que não sou uma leitora assídua de clássicos e a minha leitura, em sua maioria, é constituída de Young Adult, porém me interesso por livros mais adultos e esta foi uma obra que me deixou extremamente curiosa.
    Rebecca parece estar tão viva entre aquelas pessoas, que é quase uma ironia já ter partido e ter sido 'substituída', porém isso chamou tanto minha atenção e fiquei tão curiosa sobre o desenrolar da trama, que assim que possível irei adquirir o livro.
    A maneira com que tu falaste da obra, nos deixando encantados com a escrita de Du Maurier, sem nunca ter lido uma linha do que ela escreveu além destes trechos inclusos na resenha não faz nenhum sentido, porém foi o que aconteceu comigo.
    Parabéns pela resenha e obrigado por indicar o livro, afinal se não fosse isso, penso eu, que nunca iria descobrir a sua existência!

    Beijos,
    Samy Aquino (@umalimonada)
    http://samyaquino.blogspot.com

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  3. Eu não sou muito fã de histórias antigas, embora goste bastante de temas que envolvam coisas que aconteceram no passado, nos anos 80 ou 90. Gostei bastante da sua resenha, bem explicativa e com certeza decisiva. Mas acho que não seria bem o tipo de livro que eu escolheria pra uma leitura :/

    xx carol

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  4. Robledo, desnecessário dizer que amei a sua resenha? hahaha
    Acho que captou exatamente a essência do livro... o alto teor de suspense presente na história, a narrativa de Du Maurier me encantou enormemente e tornou-se um dos meus livros preferidos!
    Manderley adquire uma aura mágica e sombria.. e todo o tempo eu ficava impressionada com a alta capacidade e competência da autora em prender o leitor a tal ponto que nos deixava fascinados durante a leitura do livro!
    Você tocou no ponto certo, acho que o grande mérito desse livro é o clima de expectativa sempre no ar.. sempre à espera de que algo está prestes a acontecer! A forma como a personalidade que a nova Mrs. de Winter é desenvolvida também é digna de mérito! É possível visualizar claramente as suas angústias e medos e acompanhar o amadurecimento da personagem aos poucos, até o momento definitivo em que toma forma de modo tão diferente, mas ainda assim verossímil!
    A primeira vez que ouvi falar sobre Rebecca - num texto que me despertou completamente a curiosidade, tanto que fui logo atrás do livro - li que primeiramente a autora pensava em colocar o nome do livro como Mrs. de Winter, e depois mudou de ideia! Acho que essa foi a melhor sacada que ela fez, pois o impacto do nome de Rebecca é tão forte para o contexto em si, que não fascina apenas a protagonista da história mas também os leitores! Poucos foram os autores que conseguiram criar uma atmosfera tão real e palpável para a sua história tomar forma! Um livro único sem dúvida!
    Beijos!

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  5. Parece um bom livro para quem deseja se aventurar em outra área. Nunca tinha ouvido falar desse livro ou da trama. Mas fiquei curiosa quando a história.

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  6. Adorei a sua resenha. Nela está tudo que eu gostaria de ter transmitido quando fiz a resenha de Rebecca. Está de parabéns, para quem já leu o livro ou para quem não leu, você conseguiu transmitir todo o teor do livro.
    Quando tiver um tempo, leia a minha resenha também, bem mas simples que a sua. Estou aprimorando a arte de passar(para o papel) para resenha o que senti com a leitura. Ainda encontro dificuldades em transmitir as idéias.
    soniacarmo
    retalhosnomundo.blogspot.com

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  7. Robledo,

    Sua resenha, mais uma vez, foi conduzida com maestria. Estou quase indo ler "Rebecca" agora mesmo, como se eu nem precisasse estudar para minha prova de Matemática de amanhã. haha

    O que mais captou minha atenção foi, indubitavelmente, essa atmosfera descrita como sombria, meio perturbadora, com ares de ciúme e reminiscências que acompanham as personagens ao passar do tempo.

    Nota-se também, pelos trechos selecionados, que Daphne du Maurier é absoluta em sua descrição, de qualidade notável, digna de uma grande narradora.

    Vou adicioná-lo às minhas futuras leituras, definitivamente. Rebecca fará parte de minha trajetória literária, não me restam dúvidas!

    Um beijo e bom domingo!
    Ana - Na Parede do Quarto

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  8. Eu tinha comprado esse livro n'um sebo, aí resolvi lê-lo, e é MUITO bom.
    Gostei de toda a trama, é um daqueles livros que você não consegue parar. Quando você pára de lê-lo pensa logo: " o que será que vai ocorrer com "personagem tal"? "
    Isso me fez comprar outro livro da Daphne Du Maurier.
    http://www.literamore.blogspot.com.br/

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  9. Quando crianca assisti ao filme. Agora acabei de ler o livro. Fiquei com a impressao de que estava incompleto. E` assim mesmo, nao sabemos se Manderley realmente pegou fogo e quem foi o responsavel? Poderia fazer o favor de me ajudar? Obrigada, Ana

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