terça-feira, 23 de dezembro de 2014

[Resenha] Melanie Gideon - Esposa 22

"Minha esposa e eu fomos feliz por vinte anos. Então nos conhecemos."

                                                                                                                                                                                Rodney Dangerfield

Enquanto a faculdade fazia com que me sentisse no olho de um furacão, não havia leitura fora do campo acadêmico que tivesse vez comigo. Ao fim do semestre, beirando as férias, resolvi voltar às práticas usuais com Esposa 22, cuja sinopse havia me conquistado há tempos — diga-se de passagem, o preço promocional no stand da editora na Bienal de 2013 também. Depois de tanta turbulência, eu precisava de algo leve, divertido e rápido, mas com o poder de cativar e apertar o coração, e para isso só posso dizer: obrigado.
Cada publicação [...], cada foto nova, cada Curtir, cada Atualização de interesses, cada Comentário é uma atuação. Mas o que acontece com a atriz quando ela está representando para um palco vazio?
Alice e William Buckle se casaram apaixonados. Mas, dois filhos e quase 20 anos depois, Alice está entediada. Por isso, quando recebe um convite por e-mail para participar de uma pesquisa online sobre casamentos, aceita num impulso. Respondendo às perguntas enviadas por um pesquisador anônimo e carismático, ela tem a oportunidade de reexaminar a história do próprio relacionamento. Protegidos pelos pseudônimos Esposa 22 e Pesquisador 101, Alice e o condutor da pesquisa iniciam uma intensa troca de mensagens que acaba tomando um rumo cada vez mais íntimo.
A sensação que eu tenho é de que cada um de nós dois é um item na lista um do outro e que estamos simplesmente querendo riscar esse item o mais rápido possível.
A escrita de Melanie é deleitavelmente versátil. As palavras ganham a atenção do leitor com facilidade, puxando-o logo nos primeiros parágrafos à realidade conturbada e cômica da família de Alice. Com essa habilidade, de modo ágil permitimos nos importar com as figuras de sua vida e com ela própria. Usar o formulário, Facebook, conversas em forma de cenas teatrais e e-mails são calcificadores à leveza da obra. Ela não tenta se levar muito a sério tal qual outros livros que se propõem a transcrever os joguetes tecnológicos da contemporaneidade, porém usa e abusa deles para zombar de si mesma e da realidade em que fora escrita.
A guerra nem sempre é obvia, ainda mais quando [...] está em guerra consigo mesma.
Alice é a amiga que gostaria de levar pela vida. Seus nuances são passados indiretamente, fazendo com que a conheçamos de verdade em um tipo de amizade, aos poucos, sem a necessidade de apenas dizer que ela é de um jeito X, Y. Depois de terminar a leitura, vejo-na em uma representação feminina poderosa e crível — dentro e fora dos clichês inerentes à existência e que, de alguma forma, compõem a todos nós. Ela é forte e insegura, romântica e realista, responsável e sonhadora, exemplo e cheia de erros; Alice é real. É difícil destacar outros personagens, todos me capturaram com seus trejeitos divertidos, bem delineados e seus respectivos relacionamentos com a protagonista. Apontar apenas um ou outro soa quase uma traição.
Tenho a sensação de que chegamos a um ponto em que nossas experiências, nossas lembranças  nossa vida inteira, na  verdade  não são reais a menos que as publiquemos na internet. Será que vamos sentir falta da época erámos inacessíveis?
É interessantíssimo ver o modo encontrado por Gideon para problematizar temáticas clássicas (dilemas amorosos, casamento infeliz, maternidade) aliadas a aspectos contundentes do hoje (redes sociais, sexualidade, carreiras artísticas). Achei-me diversas vezes interrompendo o ato de ler só para abraçar meu exemplar, fechar os olhos e reagir de alguma forma atraente a olhos curiosos. Além de versar sobre o casamento, a obra é especial ao abordar sobre amigos e família. O trabalho no retrato de uma relação conjugal de duas décadas também foi bastante verossímil, refletindo problemas frugais e tão intempestivos quanto quaisquer partos dos altos romances e sem recorrer a soluções claramente esquematizadas.
O que todo mundo espera, imagino, é ser visto como realmente somos.
Minha admiração pela capa do Esposa é tão positiva quanto esta crítica. Tropecei em erros de revisão, porém nada que colocasse a qualidade da leitura em risco. Fonte e espaçamento do texto contribuem à fluidez e não te preparam para a saborosa reviravolta no final. Minha fuga na pele de livro me conquistou do início ao fim por sua sagacidade, autodepreciação, romance homeopático e personagens que acompanharia por muitos e outros tantos volumes. Alice pode não ter pulado na toca do coelho, mas te deu a chance de se presentear com essa leitura. Acredite, você merece.
— O amor não deveria ter que ser ensinado.
— Diz isso porque o amor vem com facilidade para você.
Título: Esposa 22.
Autora: Melanie Gideon.
Editora: Intrínseca.
Número de Páginas: 400.
Tradução: Adalgisa Campos da Silva.

Obs.: A primeira citação da resenha, de Rodney Dangerfield, é uma tradução própria e livre da original.

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