quinta-feira, 20 de março de 2014

[Resenha] Megan Crewe - O Fim de Todos Nós

"(...) tentei dizer que não somos bons e que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso".
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                                                                                                                                                                                             José Saramago
Dá para ouvir a progressão inteira da doença nos corredores: tosses, espirros, conversas agressivamente amigáveis e gritos de pânico. Só na terceira tentativa é que consegui chamar a atenção de uma enfermeira ontem, e percebi o porquê quando ela retirou um tampão do ouvido para me escutar. O vírus tem uma voz, e não é muito feliz.
Quando fui apresentado à premissa de "O Fim de Todos Nós" na Turnê Intrínseca no ano passado, parecia um contexto com um pequeno tom de comédia social, porém nem me passou pela cabeça a calamidade fatal que lhe apetecia. Apesar da surpresa positiva, li-o em dois dias apenas, pois era impossível interromper a incrível linha de pensamento que a autora criou para sua obra, raramente abordando o humor que ousei pensar ser o foco. Com personagens sólidos, um cenário fértil e a habilidade de desconstruir toda uma comunidade, não é um livro para passar desapercebido por ninguém - torço que esta resenha exemplifique ao menos alguns dos porquês.
“Acho que precisamos nos concentrar em manter as pessoas informadas sem criar pânico”, disse ela. “Normalmente, as emergências de verdade são causadas mais pelas pessoas que têm medo de ficar doentes do que por aquelas que realmente estão.”
A ilha de Kaelyn foi sitiada e ninguém pode entrar nem sair: um vírus letal e não identificado se espalha entre os habitantes. Jovens, velhos, crianças - ninguém está a salvo, e a lista de óbitos não para de aumentar. Entre os sintomas da doença misteriosa está a perda das inibições sociais. Os infectados agem sem pudor, falam o que vem à mente e não hesitam em contaminar outras pessoas. A quarentena imposta pelo governo dificulta as pesquisas em busca da cura, suprimentos e remédios não chegam em quantidade suficiente e quem ainda não foi infectado precisa lutar por água, energia e alimento. Nem todos, porém, assistem impassíveis ao colapso da ilha e Kaelyn é uma dessas pessoas. Enquanto o vírus leva seus amigos, familiares e tudo que conhece e ama, ela insiste em acreditar que haverá uma salvação. Caso contrário, o que será dela e de todos?
Nosso vírus é muito mais esperto do que aqueles que aparecem nos filmes de zumbi: não deixa as vítimas cambaleando por aí, babando e resmungando, de modo que qualquer um em sã consciência se afaste. Faz com que elas se aproximem das outras pessoas, para poder tossir e espirrar na cara delas.
A escrita de Megan é inescrupulosamente viciante, não há como prometer ler nada além de vários e vários capítulos seguidos, seja pela rapidez com que flui sua narrativa, quanto pela sucessão de acontecimentos que não se atropelam e soam tão verdadeiros. O principal acerto fora usar a narrativa através do diário de Kaelyn, que a mesma utiliza a fim de registrar tudo que acontece a si mesma e aos que estão ao seu redor, um meio de criar uma fonte de todo o horror pelo que está passando - e o diário é direcionado a um amigo que esta perdeu há certo tempo, trabalhando ainda mais os dilemas íntimos da personagem. A abordagem torna-se genial, assemelhando-se por vezes a um relato jornalístico, tamanho o resultado verossímil do conjunto de fatos.
Leo, se você, não sei como, estiver lendo isto, se voltou e estava tentando descobrir o que aconteceu e achou este diário, queime-o. Queime-o agora. [...] o vírus deve estar em todas as páginas.
Kaelyn é uma protagonista excepcionalmente crível, palpável, normal quanto qualquer um aliada a problemas de entrosamento nos quais muitos leitores irão se reconhecer. Logo no começo, quando decide ser uma nova pessoa, mais extrovertida, o vírus surge e dissolve quaisquer planos que ela tenha criado - e ironicamente, faz com que surja uma nova Kaelyn, que precisa se adaptar à rotina de caos, perdas, desapego e desamparo. Através das virtudes das jovens que protagonizam inúmeras histórias de sucesso, destaco a simplicidade no senso de realidade que eu atribuiria a poucas delas. O leque de personagens contribui para a excelência de leitura, onde Megan pode dar a cada um pequenos momentos de desenvolvimento, moldando esferas de personalidades e impressões sem muitas palavras; o rumo do livro também contribuiu para isso.
Durante todo o percurso de volta à casa de Tessa, eu me deixei flutuar nessa sensação, imaginando como conseguia ficar tão feliz com uma coisa quando tantas outras estavam dando errado.
Megan Crewe, a autora.

Acompanhamos as consequências de inúmeros ângulos, desde órfãos cujos pais padeceram devido à enfermidade ou por lutarem por seus direitos nos tempos de crises àqueles que se veem sozinhos, com parentes no continente sem poder se comunicar. O vírus afeta a todos de maneiras inconsoláveis, porém seus dilemas íntimos, que os atormentavam antes mesmo da quarentena, permanecem em seus encalços, revelando muito mais humanidade do que numerosos capítulos descrevendo suas emoções e aparências poderiam sequer prever. A experiência que tive foi através de um e-book, logo não posso opinar sobre a edição física, entretanto a virtual possui uma tipografia agradável, que flui ainda mais o ritmo do texto, além de não ter reparado em erros gerais.
“Não acha que isso é importante?”, perguntei.
“Sei que é importante. Mas, se me colocassem lá, eu ficaria mudo, paralisado. E ele tem tato. É isso que move as pessoas.”
O intuito de "isolar e analisar" não é novidade, sendo trabalhado em outras obras onde se destacam o Ensaio Sobre A Cegueira de Saramago e Sob A Redoma de Stephen King. Há de se considerar o público alvo de Crewe, os jovens adultos, então não há um nível tão aterrador se comparado às obras citadas, contudo o poder com que o material que criou nos atinge é tão esclarecedor e penetrante quanto. O desespero do isolamento do resto do mundo, a noção da orfandade das autoridades, as perdas gradativas de todos aqueles que conhece e ama e o convívio com a morte tira o melhor de todos, restando somente... O pior, o instinto de sobrevivência ou o que realmente são? Kaelyn se depara e relata esse tipo de situação, vendo pessoas que conhece desde pequena agindo como nunca imaginaria antes, em sua essência, em nossa essência, nus de qualquer esperança.
A tempestade que papai mencionou não podia ter causado aquilo tudo — nunca vi um vento nordeste destruir barcos dessa forma. Deve ter sido uma pessoa. Ou várias. Comecei a sentir tanto enjoo que tive que abaixar os binóculos e fechar os olhos. Cada vez que olho em volta, mais alguma coisa se quebrou.
A perda das inibições sociais, fazendo que todos sejam simpáticos, amigáveis e digam apenas a verdade é um mero detalhe diante das camadas de profundidade aplicadas, já que a autora prova que não é necessário sua ocorrência para que conheçamos de fato as pessoas, basta mergulhá-las no caos de uma epidemia. E o leitor é inserido nela, tomando também para si as paranoias de quem ainda não foi infectado e a ideia do risco constante que paira entre os atos pela sobrevivência. Eu me vi devastado, despedaçado, tamanha a imensidão com que o plot, a escrita e os personagens de Crewe me envolveram. Sua densidão é inevitável, tristezas que se sobrepõem e arrepiam, surpreendendo ao me pegar desprevenido pela falta de credibilidade que lhe dei. Não esperava gostar tanto dele quanto o fiz, nem mesmo sei se o deveria.
Estamos em um penhasco, todos nós, e a sobrevivência não é uma questão de ser melhor ou mais inteligente. É uma questão de resistir o máximo possível, de tentar, falhar e tentar novamente até se aproximar um pouquinho mais de uma solução.
Outro ponto que martelou em minha mente é o modo do vírus, a doença em si, se tornar praticamente um antagonista invisível da trama, ao mesmo tempo sendo o mais presente dos personagens. Ela me remeteu às sensações tão comuns e indesejáveis que cruzam nossas vidas, como ver alguém que amamos padecendo de algo e não poder fazer nada ou a autopreservação, em não auxiliar um enfermo no receio de se contaminar. A doença que força nossos limites éticos, toca na ferida, questiona nossa compaixão e expõe à força quem somos, como um perverso lembrete de que tudo pode mudar quando menos estamos preparados - e nunca estamos preparados.
A maioria das pessoas pensa que o mais assustador é saber que vai morrer. Não é. É saber que você pode ter que assistir a todo mundo que você já amou — ou mesmo apenas gostou — definhar e não poder fazer nada. 
Quanto mais apreciamos uma história, mais difícil é resenhá-la e acreditem, não fora uma tarefa fácil de tentar expor em palavras, portanto relevem se devaneei demais ou não ofereci tantas informações do enredo quanto gostaríamos. Espero que leiam o quanto antes possível O Fim de Todos Nós, se envolvam, sofram e tenham suas mentes pesadas e os corações angustiados tanto quanto eu - compreenderão melhor o que almejei dizer, porque o que podia compartilhar, pôr para fora, foi feito. Agora a escolha é sua de dar uma chance ou não à linda tragédia que poderia subtitular-se com "baseado em fatos reais" - isso não me surpreenderia.
Tive a sensação de que havia sido tudo um sonho quando acordei hoje de manhã. Mas eu ainda estava calçada, e Meredith apertava RonRon embaixo do braço. E quando desci para preparar o café da manhã, a arma de choque estava em cima da mesa de jantar. Porque isso é a nossa vida agora.
Título: O Fim de Todos Nós (#1 - Trilogia Fallen World).
Autor: Megan Crewe.
Editora: Intrínseca.
Número de Páginas: 272.
Tradução: Rita Sussekind.

4 comentários:

  1. Oi Caíque!

    Eu já tinha visto o livro, mas nunca parei pra saber qual era a história. Parece ser bom mesmo e realmente me fez lembrar de Sob a Redoma e Ensaio sobre a cegueira.
    Ele também não faz lembrar um pouco de The Walking Dead no começo? Tipo, as pessoas querendo achar um jeito de se livrar do "vírus". Sei lá. Pode ser piração minha, mas sua resenha me fez pensar nisso.
    Como sempre você escreveu maravilhosamente bem e me deixou morrendo de vontade de ler. rsrs

    Beijos,
    Gabi Lima
    http://livrofilmeecia.blogspot.com.br/

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  2. Oi Caíque! Desde a Turnê Intrínseca do ano passado esse livro me deixou curiosa, mas nunca o suficiente para comprá-lo ou mesmo baixar pra ler. Sua resenha me deixou beeem mais afim de conhecer mais a história, na verdade, desde os comentários anteriores eu já estava curiosa o suficiente hahahaha.
    Também me lembrei de Sob a Redoma, como a Gabi falou xD, meio bizarro... Parece ótimo!! :)
    Beijos, Nanda

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  3. Hey Caíque,

    Achei a premissa mega interessante, mas tenho medo HAHA porque sempre fico pensando que pode acontecer..

    Tipo o mencionado 'Ensaio Sobre a Cegueira' que estudamos um pouco na faculdade e assisti o filme.. não pude deixar de pensar no lado verdadeiro e que SIM pode ser bem real.

    E o mundo cada vez mais poluído, por várias partes, não só o ar... é bem capaz de nos levar ao grande caos daqui uns anos.

    Ótima resenha.

    bjs

    Nana - Obsession Valley

    http://www.obsessionvalley.com/

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  4. Oi Caíque! Suas resenhas sempre me surpreendendo com a complexidade analítica e tudo mais, você escreve muito bem! Então, já tinha visto esse livro por aí e não me interessei e acredito que tenha sido uma jogada ruim ter colocado ou mantido essa capa. Ao vê-la, só conseguia enxergar um thriller policial adulto ou algo do tipo e nunca me passaria pela cabeça que era um YA. Não consegui entender muito bem o que exatamente é essa doença do livro, e estou meio saturado de séries no momento. Mas sem dúvida (provavelmente quando a coleção completa já tiver sido lançada) darei uma chance ao livro. Vai que...

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