terça-feira, 29 de maio de 2012

[Resenha] Jorge Amado - Capitães da Areia

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Sinopse: A história gira em torno das peripécias de um grupo de meninos-de-rua da Bahia que sobrevive de furtos e pequenas trapaças. Por viverem em uma espécie de armazém velho e abandonado à beira do cais, os garotos do bando liderados por Pedro Bala, são conhecidos pela má-fama de "Capitães da Areia".
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Sempre desejei conceituar os requerimentos que um livro necessitaria para ser considerado “clássico”, seja da literatura mundial ou nacional. Exacerbação de detalhes? Personagens aristocráticos? Tempo de publicação? Vocabulário extra-formal? Antes poderia apontar, em minha ignorância do gênero, qualquer uma das precedentes opções, e, após ter a experiência deleitosa de “Capitães da Areia” – não cometa o mesmo erro de quem vos fala, é “da Areia” e não “de Areia” – diria que a peça-chave se trata da atemporalidade dos fatos narrados.
Sob a lua, num velho trapiche abandonado, as crianças dormem.
Seja na ditadura do Estado Novo em 1937 ou na globalização famigerada do recorrente século XXI, a prosa de Jorge Amado alcança o brilhantismo por chegar ao patamar ideal sendo avaliado atual depois de mais de 70 anos de sua primeira edição. O enredo dos meninos abandonados que furtam e praticam toda sorte de ilegalidades para sobreviver ainda é uma realidade tanto do Brasil quanto de boa parte do planeta, onde somos levados a conviver com jovens e crianças independente de nosso querer.
- Ele disse que eu era um tolo e não sabia o que era brincar. Eu respondi que tinha uma bicicleta e muito brinquedo. Ele riu e disse que tinha a rua e o cais. Fiquei gostando dele, parece um desses meninos de cinema que fogem de casa para passar aventuras.
Apesar das poucas alterações estruturais daquela época narradas para a atualidade – a história é um perfeito relato não só da sociedade baiana como da situação da cidade naquele contexto histórico –, é possível visualizar uma Bahia feliz, diversificada e socialmente distinguível. A narrativa se desenvolve por ambientes ricamente trabalhados e com detalhes intensos, a fim de submergir o leitor pelo cais, pelo areal das negrinhas, pelo trapiche onde os capitães vivem. É notório que uma das maiores preocupações do autor fora criar um espaço amostral sem escapatória para erros.
Pedro Bala sentiu uma onda dentro de si. Os pobres não tinham nada. O padre José Pedro dizia que os pobres um dia iriam para o reino dos céus, onde Deus seria igual para todos. Mas a razão jovem de Pedro Bala não achava justiça naquilo. No reino do céu seriam iguais. Mas já tinham sido desiguais na terra, a balança pendia sempre para um lado.
Talvez o livro não tenha mudado minhas linhas de pensamento quanto à “classe dos meninos de rua”, residentes dos centros urbanos – que muito se diferem dos capitães, atuantes pela sobrevivência e não por vícios ou similares, o que não os inocenta no que fazem -, contudo, com certeza me fez olhá-los diferente, não só vendo seu estado atual e sim tudo que levou àquela situação. Porque antes de Pedro Bala, Professor, João Grande, Gato, Sem-Pernas e os outros serem delinquentes juvenis que conheciam muito da vida para a própria idade; foram abandonados, direta ou indiretamente. Fora a vida que os induziu ao que se tornaram, a necessidade de sobreviver, a falta de carinho e apoio os induziu a fazer o que era preciso, correto ou não.
Mesmo porque eles não tinham culpa. A culpa era da vida...
O leque de personagens à disposição de Jorge é invejável a qualquer autor. São tantos meninos, moradores da Cidade da Bahia – vulgo “Salvador” -, classes e subclasses, tipos e subtipos, do padre que ajuda os capitães como pode à mãe-de-santo que lhes espanta a febre com galhos de sabugueiro, do doqueiro capoeirista ao diretor do reformatório de menores, todos jazem tão bem construídos, com uma verossimilhança tão profunda que chega a ser exaustivo tentar não pensar em “Capitães da Areia” como uma história real.
Mas o Sem-Pernas não compreendia que aquilo pudesse bastar [...] Que o livrasse também daquela angústia, daquela vontade de chorar que o tomava nas noites de inverno. No bando, não tardou a se destacar porque sabia como ninguém como afetar a dor.
A linguagem raramente coloca o interlocutor em becos sem saída, ou melhor, com saídas alcunhadas de “dicionário”. Conferindo uma imagem do manuscrito, percebemos que desde aquele momento isso foi possível. Assim como a narração em terceira pessoa alternando pontos de vista, funcionando como uma válvula de escape à repetição de fatos e/ou monotonia, agindo no conhecimento do íntimo dos personagens. O caráter polêmico faz jus ao tema abordado, indo do estupro ao homossexualismo e ao candomblé, – assuntos rentáveis ao saber popular tanto hoje quanto na Ditadura Vargas, havendo até a incineração de muitos exemplares em praça pública – mesmo Amado sendo essencialmente laico durante sua trajetória. 
João José, o Professor, desde o dia em que furtara um livro de histórias numa estante de uma casa da Barra, se tornara perito nestes furtos. Nunca, porém, vendia os livros, que ia empilhando num canto do trapiche, sobre tijolos, para que os ratos não os roessem.
Os meninos são parcialmente humanizados ao decorrer dos parágrafos; problemas, sonhos, desejos comuns, porém difíceis às suas realidades, formam suas personalidades e desmistificam seus atos, tornando-os tão próximos de nós que desgarrar de cada um assimila-se a perder um amigo de longa data. A prosa regionalista possui esse aspecto de identificação livro-leitor, de enredos familiares e, simultaneamente, surpreendentes. Com o centenário do nascimento do escritor este ano, a Companhia das Letras lançou uma coletânea do autor com capas impessoais inspiradas nas histórias e contracapas em motivos florais. As páginas pólen soft permanecem resistentes e a tipografia simples que divide o texto em partes possui detalhes sertanejos.
- Mas é a lei, filho...
- Morrer?
Por vezes filosófico, o texto são os personagens, inevitável torcer para o roubo decorrer bem e a varíola não matar ninguém, odiar a polícia e os ricos com toda a força e culpá-los pela opressão, dormir e acordar no trapiche quase destelhado. Temo não alcançar o nível de excelência merecedora do clássico com esta análise, hábito dos livros que conquistam e “mexem” muito conosco. Poderia prosseguir descrevendo cada preciosidade da obra, mas me contentarei em saber que ao menos uma pessoa começará a lê-lo devido a este texto. Não será uma leitura obrigatória para você como para mim, contudo se verá compelido a terminá-lo tanto quanto eu. E se for obrigado, acredite e prossiga; não irá se arrepender.
Caatingas do sertão, olor das flores sertanejas, o manso andar, do trem sertanejo. Homens de alpercatas e chapéu de couro. Crianças que estudam para cangaceiro na escola da miséria e da exploração do homem.

Título: Capitães da Areia.
Autora: Jorge Amado.
Editora: Companhia das Letras (Coleção do Centenário de Jorge Amado).
Número de Páginas: 270.

10 comentários:

  1. Adorei a sua resenha e quem sabe eu não leia o livro. Vejo que o pessoal está mudando um pouco o foco da leitura e lendo livros diferenciados. Quem sabe Capitães da areia não seja um dos livros que lerei ou comprarei.

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  2. Aposto que não irá se arrepender, Suellen! Essa edição que peguei emprestado na biblioteca do meu colégio é ótima e com uma linguagem fiel, porém com uma dificuldade de leitura praticamente nula, pode comprar e ler sem medo! Sobre o foco geral de leitura ter mudado, eu não creio muito nisso, as pessoas que eu vejo lendo pela blogosfera seguem lendo seu habitual, com raras exceções :\

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  3. Nos seminários do meu colégio desse semestre apresentaram sobre Capitães de Areia, e eu até me interessei... Mas sabe quando a gente dá preferência para outros estilos de livros? Acho literatura antiga legal, mas tem certos livros (a maioria) que são insuportaveis, ao menos pra mim ><

    xx carol

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  4. As obras de Jorge Amado são brilhantes. Já li algumas e adorei todas. A descrição do cenário é riquíssimo. Acabamos conhecendo mais a Bahia. Seus personagens são marcante, e ele sempre nos apresenta vários em sua obra. Adoro suas resenhas, parabéns!
    http://meulivrocorderosa.blogspot.com.br/

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  5. Este comentário foi removido pelo autor.

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  6. O Elas Leram é um novo blog de literatura - e de cinema extraído dela. A gente ia adorar a sua visita! Aparece lá? A casa ainda está sendo arrumada, mas já tem um cafezinho experando por você.

    Beijocas.

    www.elasleram.blogspot.com

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  7. Nunca li nenhum livro do Jorge Amado, mas sua resenha chamou minha atenção. Se eu for escolher um dos títulos do autor para ler, com certeza será esse.
    bjo e até+!

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  8. Só resenha de livro que quero ler nesse blog. Capitães de Areia é um clássico. É tão atual e brasileiro. Já está na minha lista.
    Beijos meninos

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  9. Olá, meu nome é Beatriz. Adorei o seu blog e se pudesse gostaria que você visitasse o meu; www.doces-livros.blogspot.com

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  10. Adoro esse livro! Já li umas duas vezes e leio voando, porque é muito bom e não consigo parar! Jorge Amado é um de meus autores favoritos, só podia ser conterrâneo meu! rsrs Muito boa sua resenha. Estou louca para ler Gabriela que é dele também.

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