quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Na biblioteca de Alexandria: Catherine encontrou seu Heathcliff, mas Emily Brontë morreu sozinha

Emily Brontë, autora de O morro dos ventos uivantes

[A frase do título foi adaptada desta música]

Há quem diga que o bom escritor escreve sobre temas que domina. Quando excluímos táticas como a pesquisa e o estudo, torna-se claro que a vivência de um romancista tem papel determinante na tarefa de garantir verossimilhança à sua obra. Aquele que já passou seus dias em um campo de concentração provavelmente conseguirá falar sobre a Segunda Guerra em um tom muitíssimo particular e impactante, por exemplo. Qual é a sensação, entretanto, de produzir uma história belíssima sobre algo que você nunca viveu - algo especialmente bom?  Qual é a sensação de redigir um livro de entusiasmo político e de ter a consciência de que você nunca terá coragem para sair às ruas e defender seus ideais?

A autora de O morro dos ventos uivantes, Emily Brontë, pode ser um interessante alvo de discussão. Conhecidamente tímida e portadora de sufocante introspecção, Emily criou um livro sobre a força propulsora do amor e sobre uma paixão que não se limita a uma vida, eternizando-se por gerações subsequentes. Apesar disso, a autora permaneceu em sua residência durante a maior parte de sua vida, unicamente na companhia de seus irmãos e de seus livros. Charlotte Brontë casou-se antes de sua morte prematura, mas Emily morreu solteira, aos 30 anos de idade, vítima de uma tuberculose. Sem nunca ter conhecido o seu próprio Heathcliff.


Fernando Pessoa afirma, em um de seus mais famosos e glorificados poemas, que o poeta é um fingidor. Uma das interpretações fornecidas a esse verso assevera que o verdadeiro escritor é aquele que ardentemente produz textos sobre aquilo que não viveu, chegando ao ponto de sentir uma dor idealizada. Seria essa, contudo, a única dor envolvida no processo de produção literária? Qual seria a reação de Emily ao vislumbrar seus parágrafos de amor e compará-los com sua própria realidade rotineira, da qual pouquíssimas pessoas faziam parte, e a qual dificilmente poderia ser chamada de intensa? Sentia-se feliz por ser capaz de criar uma história tão grandiosa, uma prova sobre a força hercúlea do amor? Ou sentia-se devastada, dividida entre o desejo de experienciar semelhantes aventuras e a dificuldade em vencer sua própria postura reservada?

Nunca saberemos a resposta a essa pergunta, mas o questionamento certamente abre margem para inúmeras discussões. À época do suicídio de Heath Ledger (o ator que interpretou o Coringa, no filme Batman - O cavaleiro das trevas), por exemplo, produziram-se diversos textos sobre o distanciamento que deve existir entre um artista e a sua obra. A arte alimenta-se do fingimento e as mentes deleitam-se na fantasia, mas é tudo uma espécie de mergulho: há uma determinada profundidade até a qual pode-se ir sem um risco de afogamento. Depois desse nível, a perdição é inevitável. Verdadeiramente sofrer pelas personagens que você cria ou interpreta pode garantir à sua produção um caráter passional de intensidade esmagadora, mas é preciso tomar cuidado.


Afinal, se nós sentimos a chamada depressão pós-livro ao final de uma obra que já nos vem pronta, o que não sentem aqueles que as produzem? Qual é o efeito do fim da saga Harry Potter na própria JK Rowling? Como se sentirá George R. R. Martin quando, enfim, finalizar a escrita da série Game of Thrones? Naturalmente, é de se imaginar que os verdadeiros idealizadores sinta muito mais dificuldade em praticar o desapego do que qualquer um de nós. Significa dizer adeus a cada cena idealizada, a cada aventura planejada, a cada personagem admirada. Despedir-se de um reino que você criou é uma tarefa dolorosa, e exige uma estrutura psíquico-emocional fortíssima.

Todos esses casos - e muitos outros - só revelam mais um dos caprichos da Arte: a capacidade de devorar aqueles que a praticam. Exige-se que o bom poeta sangre a cada verso escrito, mas quando é que esse sangue deixa de ser metafórico e torna-se literal? Emily Brontë criou, em sua mente e em seus capítulos, um mundo que ela provavelmente nunca chegaria a viver, mas não há ocorrências de desastres relacionados a isso. Por outro lado, há teorias que conectam o suicídio de Florbela Espanca à produção dos seus poemas mais otimistas, nos quais seu eu-lírico se declarava orgulhoso e bem-aventurado.

Esses fatos curiosíssimos hão de se repetir através dos anos e, daqui a muitos séculos, os grandes críticos literários ainda hão de se lembrar das proféticas palavras da esfinge egípcia, tão adequadas ao nosso contexto artístico: decifra-me ou devoro-te.

11 comentários:

  1. Nossa, amei seu texto, e nem sabia sobre isso de Emily. Acho que, as vezes, exatamente por sabermos que não poderemos fazer tudo o que desejamos na vida real, nós escrevemos, colocando sem querer nossos sonhos, vontades, uma história marcante e inesquecível, que só existe em nossa imaginação. De fato, o desapego com aqueles livros que mais gostamos é muito mais fácil para apenas leitores, do que para o próprio autor. Porque o leitor, vai ler outros livros, e vindo outras histórias, vai se acalmando e se emocionando com outras, ao invés de parar numa só. Mas um autor não, ele vai levar todas suas obras no coração pro resto da vida, lembrando sempre de suas histórias em certos detalhes, e se emocionando a cada vez que o pega na mão.

    xx carol

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    1. Cada parte do seu comentário é muito verdadeira, Carol. O que mais me instiga, na história toda, é a espécie de emoção que o autor sente quandose lembra de uma história que finalizou, ou encara uma trama que está a idealizar. É a emoção de contemplar uma descrição perfeita de seus sonhos e anseios, e de se sentir pleno por ter conseguido transmiti-los ao papel... Ou é a sensação de tremenda melancolia, oriunda da comparação entre o que está escrito e o que acontece na vida real? Acho que nunca saberemos o que Emily sentia. Seus poemas talvez revelem algo, mas a autora sempre foi muito introspectiva, e eu duvido que tenha produzido algo que possa esclarecer nossas dúvidas.

      Um beijo.

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  2. Sempre ao finalizar uma leitura que me toca profundamente, fico meio aluada por um tempo, saboreando e remoendo tudo que aconteceu vezes e mais vezes... acho que enquanto estamos ali, lendo cada página, é como se nos desligássemos do mundo exterior, e o mundo que passa a existir é de fato o mundo das palavras, pelo menos por um tempo. Imagino que se um leitor é capaz de sentir tamanho arrebatamento, ele deve ser experimentado em níveis ainda maiores para a pessoa que o idealizou em sua mente. É muito fácil se perder no imaginário, funciona como uma válvula de escape pra muita gente... talvez fosse assim com a Emily! Para tentar atribuir um pouco de emoção à sua vida pacata, ela adentrou sua memória e mergulhou fundo nas emoções mais primitivas que um ser humano pode ter. Acho que o fato da pessoa não ter vivenciado, não necessariamente implica em não sentir. Como qualquer mulher, ela era capaz de divagar, e ao fazer desenvolveu uma das histórias mais impactantes de todos os tempos. Acho que a bagagem intelectual de uma pessoa, muitas vezes acaba por contribuir muito mais do que as experiências que ela realmente vivenciou! Por isso temos tantos autores que muitas vezes nem sequer saíram de seus países de origem, mas escrevem sobre lugares distantes como se os tivesse visualizado com os próprios olhos, ou sobre mundos fantásticos que nunca poderiam existir. Não há limites para a imaginação... ainda bem! =)
    Parabéns pelo texto! ^^

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    1. Interessantes reflexões, Duda! Também creio que a arte pode servir como uma válvula de escape para uma vida pacata; já li uma entrevista em que a entrevistada, professora de literatura, confessava que seu amor aos livros iniciara-se na infância, como forma de escapar temporariamente da sua realidade não muito feliz. Não sei dizer até que ponto Emily sentia-se infeliz por não ter encontrado seu verdadeiro amor (ou por não ter coragem de procurá-lo), mas é muito provável que ela tenha idealizado, em Catherine, a mulher que desejava ser. Pode ser muito temerário afirmar esse tipo de coisa, e muita gente combate o estabelecimento de ligações entre a biografia de um autor e sua obra, mas até que faz certo sentido. Catherine é tudo que Emily, aparentemente, nunca foi: ousada, corajosa, impetuosa. Será que ela pode ser a projeção de tudo em que a autora queria volver-se?

      Mais do que tramas bem-articuladas, é isto que me encanta na literatura: as relações (in)conscientes que podemos estabelecer entre o que sentimos e o que produzimos. Nosso coração pinga silenciosamente nas páginas que redigimos, e sequer temos consciência desse fato.

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  3. Bom,tenho que confessar que adoro esse livro,é um romance maravilhoso e envolvente.Apesar de eu achar o príncipe encantado um pouco grosso e arogante,queria que ela tivesse encontrado seu verdadeiro amor,todo mundo tem direito.

    Bom final de semana .
    Mariana - http://worldoftorivega.com

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    1. Refere-se à Emily, Mariana? De certa forma, acho que faz parte de sua aura misteriosa o fato de não ter encontrado um amor. Assim como Capitu não seria Capitu sem seus olhos de cigana oblíqua e dissimulada, Emily Brontë não seria tão sinistramente interessante se não fosse tão reservada. É claro que todos têm direito ao amor, mas a constituição dessa figura literária parece ter sido um trabalho pontilhista. Absolutamente todos os detalhes estão nos lugares certos, organizados de forma a instigar, desafiar e questionar.

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  4. Ótimo texto! Não sabia disso sobre a Emily, deu até uma peninha dela. Mas realmente, nós muitas vezes não escrevemos justamente o que gostaríamos que fosse real mas não é? Ou simplesmente não é possível? Magia, romances eternos, isso não existe na vida real.

    E eu nunca tinha pensado nesse detalhe do fim de uma obra. Realmente, tantos leitores reclamam aos montes do término de suas sagas favoritas, e não pensam que o escritor é aquele que vai sentir mais saudades da história. Claro que há exceções, como o Sir Doyle, que tentou matar seu personagem ara não escrever mais sobre ele! O mais engraçado de tudo foi os fãs loucos ameaçando o coitado de morte por causa disso...

    Beijos!

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    1. É claro que escrevemos sobre aquilo que gostaríamos que não fosse real! Um dos pilares sobre os quais a literatura se sustenta é o escapismo, e a arte literária seria extremamente sem graça se todos os autores limitassem-se à não ficção. O que eu questiono, Lizzie, é o efeito desse desejo escapista sobre o psicológico de um autor... É como se você contemplasse um mundo maravilhoso por trás de uma parede inquebrável de vidro! Qual é a sensação? Deleite perante o que seus olhos veem, ou frustração por não poder atravessar aquela barreira miserável?

      Grande beijo!

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  5. Robledo, sinto-me na obrigação de dizer que seu texto ficou genial, com uma intertextualidade extremamente rica e um final digníssimo, de passagem.

    A abordagem do tema é bem consistente e também eu, às vezes, pergunto-me sobre a força da obra artística em seu autor. Pergunto-me se a ficção, em algum momento, não se torna atraente em uma escala tão alta a ponto de ser posta no lugar da realidade.

    Não terá Edgar Allan Poe, por exemplo, uma alma naturalmente sombria e um homem perturbado, cheio de problemas, piorado ainda mais seu ponto de vista negativo e mórbido com seus contos fantásticos?

    Todo escritor tem um pouco de mentira em sua essência. Não talvez mentira, que é em si um vocábulo muito vulgar para o contexto, mas floreios que vêm apenas para aumentar o valor da história e a vivência de quem a escreve. Não é, também, a pesquisa uma aproximação dos fatos reais vista de outro ponto de visto?

    Diz-se de Álvares Azevedo, que morreu aos 22 anos, nunca ter tido um relacionamento amoroso, em qualquer grau. Ele soube, porém, que contando com alguns dados fornecidos por fontes diversas e uma rotina, acabaria conseguindo gerar uma obra palpável para o leitor. Noite na Taverna fala de sexo sujo, profanismos diversos, incesto, morte, estupro e duvido que seu "pai", por assim dizer, tenha alguma vez se retirado dos portões de sua rica moradia para presenciar os fatos se sucedendo.

    Um beijo!
    Ana - Na Parede do Quarto

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    1. Excelentes exemplos os seus, Ana. Não havia pensado sobre o poder dos contos do Allan Poe no seu próprio caráter funesto, mas é realmente uma tese que vale a pena ser defendida. Assemelha-se bastante àquela história de que, quando estamos tristes, procuramos músicas que intensifiquem nossa tristeza, e não canções que nos façam felizes. Isso lembra-me, também, a produção do Augusto dos Anjos: apesar de ter experimentado razoável sucesso no que tange ao desenvolvimento acadêmico, é notável a intensificação do sentimento de tristeza ao longo das fases de sua poesia. É como se os versos (vale destacar "Melancolia! Estende-me a tua asa!" e "A podridão me serve de Evangelho") frequentemente lembrassem o autor de sua condição tristonha, reforçando seus sentimentos negativos.

      Talvez Álvares e Emily tenham tido reações diferentes ao mesmo fato, ao mesmo isolamento amoroso. Talvez os dois tenham experimentado níveis distintos de frustração - a qual expiaram por meio da produção literária. Emily recorreu a uma narrativa infinitamente menos explosiva e chocante do que a de Álvares, mas, talvez, a raiz da coisa seja a mesma.

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