sábado, 26 de novembro de 2011

Palavras sobre palavras: como a literatura me fez querer ter um irmão

Eu sou filho único. Por motivos que desconheço, meus pais jamais tomaram a iniciativa de me dar um irmão com quem crescer, lado a lado. Ao longo da vida, várias pessoas já me questionaram acerca do meu desejo de que meus pais houvessem tido mais um filho, de forma que eu tivesse outra pessoa da mesma idade em casa, passando pelos mesmos processos e descobrindo as sutilezas da vida ao mesmo tempo. Essa questão sempre foi responsável por me deixar pensativo e, sobretudo, dividido: por mais que eu possua um caráter independente e aprecie a privacidade que tenho enquanto filho único, não posso negar que provavelmente teria mais memórias fascinantes da minha infância se houvesse crescido junto a um irmão ou irmã. Por anos a fio me encontrei preso nessa dicotomia, sem saber se estava ou não disposto a abrir mão - ainda que hipoteticamente - de tudo aquilo que eu havia vivido até então. A solução para o problema veio em um momento interessante e determinante: quando eu comecei a ler.

A primeira experiência que vem à minha mente é a minha passagem pelo Jardim dos Esquecidos. A história é longa, mas há uma cena do livro que jamais abandonou minha cabeça: por razões complicadas, Chris, Cathy, Cory e Carrie - quatro irmãos - são forçados a passar uma semana sem comida alguma. Conforme os dias transcorrem, os quatro vão enfraquecendo pouco a pouco, sentindo que as forças abandonam seus corpos (nenhum deles tem mais de 15 ou 16 anos) e as esperanças fogem de seus espíritos. No auge da angústia, ocorre o tal episódio que ficou gravado inexoravelmente no meu peito: Chris, o irmão mais velho, não suporta mais observar seus três entes queridos enfrentando aquele terrível tormento, e decide cortar o punho esquerdo. O fascinante, contudo, é que o rapaz não faz isso de forma a se suicidar e deixar para trás um mundo de suplícios: ele o faz para que seus irmãos mais novos possam beber um pouco do seu sangue e, assim, aproveitar quaisquer nutrientes ali existentes. Chris abre mão do bem-estar para garantir aos demais um pouco de alívio, em um gesto admirável, de nobreza infinita.

A partir daí, uma vastidão de cenas adquiriu, aos meus olhos, um novo valor expressivo. Em O céu está em todo lugar, encontrei uma menina singela que não consegue aceitar por completo a morte da irmã, e que espalha poemas pelo mundo em uma bela tentativa de lidar com o que a aflige. Em Memórias de uma gueixa, sofri ao testemunhar a separação forçada entre duas irmãs, em função da pobreza e da estranha configuração da sociedade japonesa da época. Em Pássaros Feridos, cujo nome até hoje me causa arrepios, vibrei com a bucólica e humilde organização dos irmãos da família Cleary, quase batendo palmas ao ver Frank procurar os fios de cabelo da boneca de sua irmã mais nova em meio a uma infinidade de grama e terra. Sempre de formas diferentes e sempre surpreendente, a literatura me presenteou com uma aquarela de cumplicidade, um mosaico surreal sobre a bem-aventurança que a irmandade traz.

Tenho consciência de que o conceito que os livros nos apresentam pode ser um tanto exagerado e até utópico, mas a minha afeição a ele foi inevitável. Enquanto, na vida real, eu testemunhava uma briga boba entre dois irmãos, na literatura eu me deparava com vários gestos de nobreza imensurável, com situações em que percebia claramente a belíssima presença real do "um por todos e todos por um". Passei a sentir certa inveja dos personagens que conhecia, a admirar cada simples linha que descrevesse a harmonia e a força da relação entre aqueles que tinham o mesmo pai e a mesma mãe. Sobretudo, comecei a desejar que aquilo se reproduzisse também na minha realidade, a rogar para que todos aqueles bons sentimentos pulassem para fora das páginas e para dentro da minha vida.

Infelizmente, creio que já era tarde demais. Agora tenho 17 anos, e nunca terei a chance de crescer junto a um irmão; se meus pais resolvessem ter outro filho agora, eu provavelmente estaria na universidade quando ele falasse as primeiras palavras e desse os primeiros passos, e as chances de que eu conseguisse criar uma relação de igual para igual entre nós dois seriam pífias. Isso é um fato, e eu preciso me resignar a aceitá-lo. Consegui outros irmãos em outros lugares - hoje, há pessoas em relação às quais eu nutro os mais profundos sentimentos de cumplicidade e respeito -, mas nunca terei o mesmo sangue que nenhuma delas. Jamais.

Não obstante, não acredito que isso me permita condenar a literatura. Sem ela, eu provavelmente não aproveitaria tanto as minhas amizades, e não valorizaria pequenas palavras e minúsculos gestos de afeição. Se  os livros me mostraram relações quase divinas de irmandade e cumplicidade, eles me permitiram aplicar esses conceitos àqueles que me cercam, maximizando os nossos elos de companheirismo. Em suma, se a literatura me fez querer ter um irmão, não o fez para que eu percebesse, com tristeza, que jamais poderei alcançar isso em termos biológicos: fez para que eu notasse a altiva extensão que as amizades podem atingir, permitindo-me aplicar isso nas minhas próprias estradas. A literatura me deu os irmãos que eu não tive.

10 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Nossa! Que texto lindo!
    Sua percepção sobre o altruísmo e a cumplicidade fraternos é comovente. Mas amigos podem construir laços muito mais profundos, que - ainda que não sejam de sangue - traduzem as mãos dadas na vida.

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  3. Robledo,

    Que texto maravilhoso! Quanta sensibilidade nas suas palavras ao abrir-se para seu leitor sobre um assunto tão delicado, tão íntimo quanto esse do desejo de ter um irmão...

    Não posso dizer que compartilho dos seus sentimentos pois desde que tenho 3 anos, conto com meu caçula para me encher a vida de chateações, traquinadas infantis, divisões e, acima de tudo, puro amor fraternal. Acho que com eles, de alguma forma, nos tornamos menos egoístas, mas há também aquela outra espécie de irmão... Aqueles que existem justamente para quem não os têm em sangue, todavia em sincera consideração, os amigos. E é essa uma bonita missão da literatura, acalentar e confortar, dar, através de bonitas palavras e gestos, irmãos a todos os seus leitores para que nunca se sintam sozinhos.

    Ao fim, posso dizer que fiquei arrepiada com a história de "Jardim dos Esquecidos" e me pergunto até onde somos capazes de ir por esses amores...

    Beijos,
    Ana - Na Parede do Quarto

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  4. Oi Robledo!!

    Nossa, muito lindo o seu texto, de verdade.
    Mas tenho que dizer que, sem duvidas, essa é a imagem de uma pessoa que não tem irmãos e não tem ideia de como seja. E vou te dzr, passa bem longe disso.
    Eu tenho um irmão mais novo e dp que ele fez 6 anos, o nosso relacionamento foi de mal a pior.
    Hoje, eu com 24 e ele com 17, trocamos poucas palavras e geralmente nada carinhosas.

    Enfim, cada um tem uma experiência diferente, certo?!

    Beijos, Ká!!!
    Walking in Bookland

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  5. Caramba, Robledo, que texto lindo =)
    Bom, tendo crescido com dois irmãos e nem sempre alimentado a sonhada cumplicidade fraternal... só posso imaginar como se sente. Já me imaginei sendo filha única. Provavelmente seria mais solitária do que hoje XD

    Acredito que Deus dá o cobertor conforme o frio, como dizem os mais velhos. De repente, essa falta da sua infância vai preencher a dos seus filhos, no futuro, se optar por ter mais de um ^^

    Tudo tem uma razão de ser, mais cedo ou mais tarde a gente acaba vendo o que era.

    Beijos, amigo!

    This
    Canto e COnto

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  6. eu vivi por muito tempo com essa dualidade.
    valorizo minha independência tambem, mas sempre imaginei essa cumplicidade de irmãos.
    irmãos são sua melhor lembrança do passado e maior segurança pro futuro.
    hoje, transfiro - ou tento - esse sentimento pra alguns amigos, mas com a desvantagem de nao ter a segurança de que a recíproca será verdadeira.
    eu ainda nao parei pra pensar o que a literatura tenha me ensinado de mais forte, algo que tenha mexido com minha essencia (Kundera chega bem perto disso), mas sempre analiso determinadas historias, nao o enredo em si, mas o fundamento de sensações como amor e fraternidade.

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  7. oooi *-* rs. que texto lindo!
    ter um irmão não é como nos livros, te garanto, rs. Eu tenho um que é quatro anos mais novo que eu e no início brigávamos muito, na verdade, boa parte da nossa convivência foi só com brigas! Mas agora... nos últimos anos, quando ele entrou "na mesma faixa" que eu, tudo mudou, ele virou um dos melhores amigos que eu tenho, uma das pessoas que eu mais confio, porque por mais amigos que eu tenha, em nenhum eu posso dar os esporros que dou e saber que no dia seguinte vai estar tudo bem porque... Afinal, a convivência nos obriga a pôr tudo de lado! Mas as vzs (não atualmente) desejei MUITO ser filha única, as vzs ter um irmão não é perfeito como parece ser nos livros (Li O céu está em todo lugar tbm), as vzs eles são criaturas desprezíveis, kkkkk assumo que sou muitas vzs tbm! xD Mas... Vale a pena, pena você não ter um irmão, mas agora, é pensar em quando voc tiver um filho (se quiser ter), dar um irmão pra ele, :D

    Beijos, Nanda
    www.julguepelacapa.blogspot.com

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  8. Robledo, quero te parabenizar pela excelência com que este texto – uma obra-prima – foi escrito. Devo-lhe um “obrigado” por compartilhar com nós, os leitores, sentimentos tão preciosos.
    Fico muito feliz em saber que os livros lhe proporcionaram bem mais que entretenimento naqueles dias de tédio; bem mais que informações para aquela avaliação de literatura; bem mais que material para as resenhas do blog LLM.
    Bom, mais uma vez, parabéns!
    P.s.: Não é porque você já tem 17 anos que não pode viver a experiência de se ter um irmão biológico... O mundo dá voltas e mais voltas (literalmente); a vida é cheia de surpresas!
    @Jonathan_HGF

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  9. Oi Robledo!

    Adorei o tema desta crônica. Ter um irmão é legal, divertido e te dá bastante experiência boa para colecionar. Mas a minha diferença de idade do meu irmão é de 7 anos, então não aproveitamos muita coisa juntos. Quando ele estava na fase chata de me achar criança demais para poder andar com ele, eu ainda era criança demais para poder compreender que ele não tinha mais idade para brincar de boneco e de pique-esconde comigo. É bom você poder compartilhar as coisas com ele e ter com quem reclamar sobre seus pais, mas tem aquela coisa chata de dividir tudo. Filho único é mais fácil, tem mais dengo e dindim sobrando dos pais para gastar com tudo o que quiser, não querendo soar material.

    ;*, Matheus.
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  10. Que lindo! *-*
    Tenho uma irmã mais velha e uma mais nova, mas não tenho laços admiráveis com nenhuma... Às vezes penso até que seria melhor ser filha única.
    Podemos compartilhar quase tudo que bons irmãos compartilham com certos amigos. :)

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