domingo, 16 de outubro de 2011

[Resenha] Gordon Reece - Ratos

Enquanto movimento literário, o Naturalismo se desenvolveu em território brasileiro na segunda metade do século XIX. Consagrando-se como uma espécie de Realismo extremado, o movimento naturalista propunha uma análise biológica da sociedade, onde os homens eram tratados como animais e tudo era baseado em uma espécie de determinismo genético-social. Em O Cortiço, Aluísio de Azevedo sintetiza toda a estética do movimento naturalista, promovendo a animalização constante e irascível de seus personagens, principalmente por meio de uma linguagem plena de onomatopéias (um trecho: O rumor crescia, condensando-se; o zunzum de todos os dias acentuava-se; já se não destacavam vozes dispersas, mas um só ruído compacto que enchia todo o cortiço).

Dois séculos depois, em seu primeiro romance, Gordon Reece decide retomar essa tendência. Ratos, publicado pela Editora Intrínseca, dá voz a uma adolescente de quinze-dezesseis anos, que, desde os primeiros parágrafos, já deixa claro o seu caráter: ela é um rato. Não no sentido literal, mas no metafórico: assim como os ratos, nossa protagonista Shelley e sua mãe são frágeis, submissas, tendem a se esconder quando o perigo surge. Têm medo. Curiosamente, essa realidade não nos é apresentada em um tom de lamento ou de melancolia, mas em um conformismo sereno: é essa a essência das duas personagens principais, quer o leitor goste disso ou não.
Elas viram-na aceitar com humildade um aumento salarial verdadeiramente ofensivo, viram Davis e os outros advogados da empresa despejarem seus problemas na mesa dela e mal agradecerem quando eram resolvidos, viram Blakely constantemente pedir a ela, cinco minutos antes do fim do expediente, que trabalhasse até mais tarde ou "que analisasse um processo no final de semana", porque sabia que ela era fraca demais para dizer não.
Shelley e Elizabeth, sua mãe, são personagens criados para despertar pena. A pobre garota começa o trajeto pela sua galeria de infortúnios ao nos contar a história do bullying que atormenta sua vida: três garotas que, durante a infância, formaram um grupo de fortes laços de amizade junto a Shelley, em pouco tempo se volvem em cruéis praticantes da violência. A narradora se vê forçada a aguentar, dia após dia, provocações, atos brutais e humilhação. E é lógico: sendo um rato, Shelley não revida: apenas recebe a sua parcela de sofrimento sem que chore muito alto, torcendo para que tudo passe. Depois de um incidente traumático, gerador de cicatrizes externas e internas, a garota desiste das aulas normais e passa a receber, em casa, tutores particulares.

Cercada por música, literatura e pelo conforto do seu próprio lar - ou da sua própria toca -, Shelley aos poucos vai se acostumando à ideia de uma felicidade não tão efêmera. Passa a aproveitar os dias ao lado da mãe e a se empenhar para compreender as entrelinhas de Macbeth, acreditando que todo o seu passado foi uma nuvem negra e tristonha, mas fugidia. Há um raio de luz surgindo no horizonte, e Shelley se apega a ele como o náufrago que, após uma semana em alto mar, se atira à praia que revela uma pequena vila. Mas é claro que tudo não poderia ficar assim. No dia do seu 16º aniversário, acontece algo que transforma toda a concepção de mundo da garota, e cujas consequências se desenrolam até o final do livro. E é óbvio que eu não vou estragar a surpresa.
A realidade era exatamente o oposto da ordem e da beleza; era o caos e o sofrimento, a crueldade e o horror. Era ter seus cabelos incendiados sem ter feito mal a ninguém, era ser explodido por uma bomba terrorista ao levar seus filhos à escola ou ao se sentar em seu restaurante favorito, era apanhar até morrer em uma viela enquanto lhe roubam o pequeno salário que acabou de receber, era ser estuprada por bêbados, era ter a garganta cortada por um viciado que invadiu sua casa à procura de dinheiro. A realidade era um massacre diário de inocentes. Era um abatedouro, um açougue, forrado pelos corpos de inúmeros ratos... 
O tom de Ratos é sensacional. Verdadeiramente. Acho que todos precisamos de um choque de realidade de vez em quando, para que nos lembremos de que o mundo não se resume a romances água-com-açúcar. Sonhar é lindo, mas também é preciso colocar os pés no chão e se lembrar de que, enquanto vocês leem essa resenha, há pessoas sendo oprimidas mundo afora. Há dor e há miséria. Há caos. O caráter cru do livro não permite que nos esquecemos disso, e eu aplaudo Gordon Reece: em seu primeiro romance, o autor não se rendeu a comercialidades, mas usou um tom muito mais propenso a gerar repulsa do que admiração. É preciso ser corajoso para isso.

A única coisa que me impede de dar nota máxima a Ratos é a própria história. As descrições e as emoções são esplêndidas e o ritmo é agradavelmente frenético, mas ainda sinto que faltam melhorias no próprio desenvolver dos fatos. Talvez não nessa história, que pareceu não deixar nenhuma ponta solta; entretanto, nos seus próximos livros, seria interessante que o autor desenvolvesse tramas mais plenas, com mais interstícios. Sabe quando você se lembra de uma história e percebe que há alguns detalhes que, por mais que não façam diferença no resultado final, dão todo um caráter de completude às suas palavras? É disso que senti falta em Ratos. Apesar desse detalhe, recomendo a leitura aos fracos e fortes.

Título: Ratos.
Autor: Gordon Reece.
Editora: Intrínseca.
Número de Páginas: 238.
Avaliação: 4 de 5.

5 comentários:

  1. Fala aí, Robledo! Hummm... vi um tuíte seu dizendo que o livro não estava te empolgando. Bom saber que, no final das contas, o livro te agradou, mesmo com algumas falhas.
    Eu gostei bastante do enredo e da maneira como o autor configurou os personagens.

    Abraços!
    @Jonathan_HGF

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  2. Impossível falar de Naturalismo sem citar O Cortiço, não é?

    O livro deve ser mesmo chocante e admiro autores que têm a coragem de escrever histórias assim. Concordo que é bom termos esse choque de realidade as vezes, saindo da zona de conforto causada pelos romances água com açúcar, mas ainda assim a leitura não me cativou muito.
    Acredito que dependa muito do tipo da história, e essa, por mais interessante que pareça, não me animou muito!

    Suas resenha, pra variar, só merece elogios!
    Não pude deixar de pensar enquanto lia, principalmente pela introdução sobre o naturalismo: seus professores de português amam você, não amam?

    Beijos!

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  3. Bom ler isto. Ganhei este livro na semana passada e deve ser o próximo que eu lerei.
    Eu tenho grande respeito por autores que têm a criatividade de nos dar tapas na cara sob a forma de metáforas, ou mesmo os que fazem isso de forma mais crua mesmo.
    Mais que isto, estou ansiosa por ler este que é um lançamento, um autor novo, mas que GRAÇAS AO BOM DEUS aparentemente consegue fugir dos atuais clichês adolescentes que me dão embrulhos de tédio e decepção.
    Então, vamos lá!

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  4. Olá, é a primeira vez que entro em seu blog e adorei sua resenha, parabéns! Hoje com inúmeros sites e blogs sobre leitura, já li cada tipo de resenha, mas a sua foi a melhor que li até agora. Estou lendo "Ratos" neste momento e estou adorando, prendeu minha atenção do início, por ser uma ótima narrativa e uma estória diferenciada, como você disse nesse mar de romances água-com-áçucar é muito bom encontrar livros nesse nível. Parabéns novamente e vou continuar meu leitura que estou curiosa para saber o desenrolar dos fatos. Bju!

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  5. acho que se ele tivesse deixado o final em aberto teria ficado mais emocionante.

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