quarta-feira, 1 de junho de 2011

[Resenha] Milan Kundera - A Brincadeira

Conheci Milan Kundera por intermédio de uma amiga (a Gabi, que eventualmente rabisca uma parcela dos seus pensamentos no Gabinóica). Isso quer dizer que ela interagiu de tal forma com a obra do autor, experimentou sensações tão particulares ao navegar por suas palavras, que gostaria que outras pessoas pudessem ter as mesmas reações - e uma das pessoas às quais ela indicou o autor fui eu. Muito bem. Eu tenho um apreço enorme por aqueles que me indicam livros e, na medida do possível e do razoável, faço questão de ler todas as obras que me são indicadas; esse ano, por exemplo, ainda tenho de ler Grande Sertão: Veredas, romance do modernismo brasileiro que também me foi indicado por uma pessoa muito querida. Mas chega de devaneios a respeito desse tema: pulemos à análise dessa obra.

A Brincadeira narra a história de Ludvik, um homem que decide voltar à cidade onde passou grande parte de sua juventude, e que por isso se depara com uma série de eventos que remontam ao seu passado distante, vendo-se forçado a realizar confrontos entre o que ficou pra trás e o que ainda se passa em sua vida. Eu me arrisco a dizer que a trama do livro é bastante simples; a graça está, como eu sempre digo, na forma como a mensagem é transmitida ao leitor. Por exemplo: logo na terceira página, avisam-nos que o livro tem sete partes - e, é claro, cada uma dessas partes tem um narrador diferente. O próprio Ludvik inicia a contagem da história, mas essa tarefa é logo transmitida à desconhecida Helena, que depois entrega a pena novamente a Ludvik, que por sua vez a devolve a Jaroslav... Enfim, uma sopa de narradores.

Contudo, mesmo que haja sete pessoas diferentes contando essa história, todas falam da infância, da adolescência e da maturidade de Ludvik: o livro aborda suas perseguições amorosas, sua temporada no exército e sua relação com o Partido Comunista, dentre outros tópicos. O recurso da multinarração é utilizado por Kundera de forma a criar um caleidoscópio de mini-contos e mini-narrativas que convergem em um denominador comum: todas demonstram como o desejo de Ludvik por vingar-se daqueles que o expulsaram do Partido Comunista foi responsável por determinar todo o curso de sua vida, e expressam como o rancor que sentimos do passado pode se tornar um poderoso obstáculo ao fluir do rio do presente. A narrativa de Ludvik é bastante reflexiva e, principalmente nas quatro primeiras partes do livro, fez com que eu me identificasse de corpo e alma com vários trechos.
Eu não tinha, a exemplo dos hipócritas, uma cara autêntica e outras falsas. Tinha muitas caras porque era moço e porque não sabia eu mesmo quem era e quem queria ser. (No entanto, a desproporção existente entre todas essas caras me dava medo; a nenhuma delas eu aderia por completo, e por trás delas evoluía, desajeitado, às cegas.)

Só me decepciona que esse tom profundo não se tenha mantido durante os outros 60% da obra. Parece-me que, a partir de uma determinada parte da história, o autor se concentrou muito mais em criar uma exposição sobre a música, a cultura e o folcore tchecos - e isso pode até ser interessante, mas depois de um certo tempo fica cansativo! Jaroslav, um dos sete narradores, dedica praticamente a integridade da sua parte em A Brincadeira a fazer uma explicação sobre a diferença entre a música barroca e a música clássica, disposto a determinar qual das duas foi responsável pelo surgimento da música tcheca. E, para quem não entende absolutamente nada de teoria musical, como é o meu caso, essa parte é extremamente enfadonha. Cansativíssima, mesmo.
Os cantos morávios apresentam uma inimaginável complexidade de tons. Seu pensamento harmônico é enigmático. Começando em tom menor, eles terminam em maior, parecendo hesitar entre diferentes tons. Muitas vezes, quando preciso harmonizá-los, não sei absolutamente como compreender o tom. E muitas vezes eles possuem a mesma ambiguidade na ordem rítmica.

Esse teor teórico, que se prolonga até o fim do livro, foi responsável pela maior parte das minhas decepções. Eu esperava encontrar uma obra com profundas análises sobre a nostalgia e a relação passado-presente, mas - conquanto essas análises sejam sim feitas em alguns momentos -, encontrei um guia sobre os costumes tchecos. Também trata-se de uma obra bastante política, com longas e sucessivas referências ao socialismo, a Marx e a todas as teorias desse campo de pensamento. Não sou nenhum entusiasta político, mas essa parte é até deveras interessante, e vale a pena lê-la só para ver um pouco daqueles longos capítulos que Marx escreveu em O Capital sendo colocados em prática.

Em suma, A Brincadeira é um livro regular. Corre em alguns momentos; arrasta-se em outros; faz com que você queira abraçá-lo em algumas passagens; e por fim provoca no leitor o desejo de arremessá-lo longe em tantas outras. É uma leitura boa, mas esteja preparado: mais do que uma viagem pelo passado de Ludvik, você encontrará uma longa dissertação sobre a história e a cultura tchecas. Se você é apaixonado pelo tema, ótimo. Se, como eu, você tem apenas um vago interesse - nada que ultrapasse a barreira da curiosidade-, cuidado: você pode ter alguns problemas.

Título: A Brincadeira.
Autor: Milan Kundera.
Editora: Nova Fronteira.
Número de Páginas: 404.
Avaliação: 3 de 5.

6 comentários:

  1. Excelente resenha. Nunca havia ouvido falar no livro nem no autor, mas lendo esse post creio que pude ter uma boa ideia da obra. Mesmo com todos os "alertas" sobre as partes cansativas e muito específicas, eu ainda mantive uma certa curiosidade pela leitura - ainda que não seja uma grande apreciadora de teorias de cunho político e que meu interesse pela cultura tcheca também não vá além da simples curiosidade.

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  2. Interessei-me pela troca de narradores e o tom profundo do início, mas não leria por causa do restante do livro ser enfadonho...

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  3. Olha, nunca tinha visto nenhuma opinião a respeito desse livro. E confesso que a capa não me conquistaria.
    E lendo sua resenha o livro até me pareceu ser um pouco interessante, não é o tipo de livro que costumo me interessar, mas... eu acho que daria uma chance.. gostei bastante do primeiro treco que você citou, e como vc msm disse é realmente uma pena que esse tom profundo não tenha continuado.. gosto de livros assim, que mexem com a gente, nos faz pensar e nos acrescentam.. :)

    Beijos. Parabéns pela resenha!
    & boas leituras! *-*

    Amanda.
    Lendo&Comentando

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  4. Oie :) Tudo bem?
    Adorei a resenha, muito bem escrita! Mas não gostei muito do livro, a história não me cativou!
    Mas deve ser interessante porque nos faz refletir!
    Parabéns!
    Obrigada pela visita e pelo comentário!
    Tem post novo no blog: Resenha - Destino em Vermelho e Preto
    Tá rolando a promoção - Da estante para sua TV - http://migre.me/4E8ep Participe :)
    Beijos, Nath
    @brgnat
    Books In Wonderland - http://booksinwonderland.blogspot.com

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  5. Oi Robledo.
    O início do livro parece ser bem interessante, mas esse negócio de ser muito teórico não é pra mim.
    Adoro história, mas não estou afim de ler um livro que fale sobre O capital de Marx.

    BJss*
    Gabi Lima
    http://livrofilmeecia.blogspot.com

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  6. Kundera as vezes é difícil de digerir mesmo, até pra mim, que o tenho como uma das maiores referências bibliográficas da minha vida. Sua mania de arrastar o enredo me irrita um pouco, mas o que me prende são suas teorias sobre a existência humana, me fazem pensar: "nossa, não é que é mesmo?".
    Mas agora eu preciso falar de algo que venho notando há tempos: a superficialidade de algumas pessoas sobre determinadas obras.
    Em todos os blogs recentes sobre livros, vejo pessoas avaliando o livro pela capa. Na minha humilde opinião de amante da leitura e do bom uso do idioma - seja ele qual for - colocar a capa de m livro como ponto positivo ou negativo para JULGAR A OBRA é uma ofensa das mais graves.
    Vamos relembrar as capas antigas de S. Sheldon, que na maioria das vezes trazia mulheres com maquiagem esdrúxula e fontes tenebrosas. No que exatamente isto melhorava ou piorava a trama?
    Devo dizer, inclusive, que esta capa de Kundera faz parte de uma série lançada pela editora na época, todas muito parecidas, então provavelmente ninguem iria gostar delas porque afinal não são acpas lindas, de luxo e bem tratadas no Photoshop, são apenas pinturas de paisagens da República Tcheca (na época, ainda Tchecoslováquia).
    Vamos pontuar como exemplo: Crepúsulo. A saga inteira tem capaz lindas, com elementos misteriosos. Olha, eu adoraria ter feito aquelas capas, me orgulharia - caso eu fosse designer.
    Deixando a rabugisse de lado, porque não sou eu a mãe que vai ensinar aos filhos que uma boa leitura se faz do miolo e não capa da budega do livro, queria pontar outra coisa, uma curiosidade, na verdade: Eu comecei a me interessar pela história de Praga justamente depois de ler os livros de Kundera, não o contrário. Hoje, Praa significa muito pra mim, assim como o idioma local e os artistas vindos de lá. Talvez por ser tão diferente da minha realidade, me fascinou bastante.
    Kundera, assim como outros escritores mais antigos (Umberto Eco, Gabriel García Márquez), é incrível, fascinante, e um exímio buscador das possibilidades humanas. Quisera que nossos novos leitores possam um dia tornar-se menos fúteis e dar chance às obras, mesmo quando a capa não é tão...glamurosa.

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