segunda-feira, 11 de abril de 2011

[Resenha] Lionel Shriver - O Mundo Pós-Aniversário

Você já deve ter notado que, em livros, antes de a história começar, os autores às vezes inserem algum fragmento que os tenha inspirado, ou que sirva de base à trama que está prestes a ser contada. A menina que não sabia ler inicia-se com um belo poema intitulado "O Cisne"; Anna Karenina, clássico da literatura russa, compartilha com o leitor, nesse momento de divisão de inspirações, um versículo bíblico (Deuretônimo, XXVII, 35). Lionel Shriver, por outro lado, recusa a oferta de iniciar sua fábula do amor contemporâneo com versos de Shakespeare ou letras das canções dos Beatles - em vez disso, opta por uma frase que pode chamar a atenção tanto por sua banalidade quanto por sua simplicidade: Ninguém é perfeito.

Irina McGovern é uma ilustradora de livros infantis. Norte-americana vivendo em Londres, leva uma vida tranquila ao lado do marido, Lawrence Trainer. Este último, funcionário de um centro de pesquisas estratégicas, é um homem altamente intelectualizado, de lealdade sólida e qualidades morais invejáveis. Irina e Lawrence mantêm um casamento estável, do tipo que não chama a atenção por sua intensidade, mas sim por sua firmeza. Tudo ocorre muito bem, até que Irina se vê completamente tentada a beijar outro homem.

Sensualmente volúvel por natureza, Ramsey Acton, o terceiro personagem-chave dessa brilhante história de fidelidade, é um jogador de sinuca com grande prestígio no Reino Unido, sendo um dos desportistas mais populares entre a comunidade britânica. Completamente oposto a Lawrence - o marido de Irina -, Ramsey exerce sobre a ilustradora um magnetismo de força inexorável, capturando-a e lançando-a a uma bifurcação cruel: trair ou não trair? Correr rumo ao intenso ou se apoiar nas hastes do seguro? É claro, meu amigo leitor, que tudo isso que falei até agora acontece apenas no primeiro capítulo.
Mesmo assim, poderia ser uma decisão insignificante. Bêbados e confusos, era comum os farristas fazerem coisas, altas horas da noite, pelas quais se culpavam de manhã com um risinho minimizador. Mas a minimização desses momentos era para outras pessoas. Porque Irina soube com perfeita certeza que se achava, naquele instante, na encruzilhada que mais teria repercussões em sua vida.
Muito bem: é exatamente nesse momento que começa o tcham do livro. O que poderia ser uma simples e comum história de trair-ou-não-trair, sob a ótica perscrutadora e o inegável talento com o psicológico de Lionel Shriver, começa a se transformar em uma experiência deveras inesperada, a começar pelo formato: quantos livros que você leu tinham dois capítulos dois, dois capítulos três, dois capítulos quatro? Acontece o seguinte: em vez de atirar sobre seu leitor uma decisão feita por ela mesma, Shriver decide ir aos mais profundos abismos da mente de Irina e mostra o que teria acontecido em cada um dos dois casos. Os primeiros capítulos de cada par (podemos chamar de 2.1, 3.1, 4.1) refletem tudo o que teria acontecido caso Irina se tivesse entregue à tentação de beijar Ramsey; os segundos de cada par expõem a situação contrária e apresentam tudo que teria acontecido caso o autocontrole tivesse falado mais alto.

Lionel (caso você ainda não tenha percebido, trata-se da mesma autora de Precisamos falar sobre o Kevin) pode não ser exatamente uma mestra do suspense, e essa realmente não é a proposta dela. Você não vai encontrar cenas de adrenalina, com Lawrence tendo que decidir entre o fio vermelho e o azul; você não se deparará com cenas de breakthroughs através de complexos sistemas de segurança. Em vez de tudo isso, se você resolver ler O mundo pós-aniversário, vai encontrar uma série de personagens absurdamente, assustadoramente, revoltantemente... humanos. É o tipo de livro responsável por fazer com que as suas próprias emoções entrem em conflitos, de forma que você nunca saberá se odeia ou idolatra um dos peões da trama. Lawrence, por exemplo, muitas vezes mostra-se pedante e inconveniente durante a segunda história (aquela em que Irina não o troca por Ramsey), ao passo que se mostra alguém no mínimo louvável, no conto oposto, como no trecho abaixo.
Irina vasculhou o rosto do ex-companheiro.
- Por que você é tão bom comigo?
- Você foi boa para mim por quase dez anos - retrucou ele, em tom brusco. Por que isso não teria nenhuma importância, pelo simples fato de não virem a ser onze?
As duas histórias se desenrolam em paralelo, e é tremendamente fascinante observar como o mesmo fato pode ocorrer de duas maneiras completamente diferentes, simplesmente em virtude das consequências às quais tal acontecimento está associado. O mundo pós-aniversário nos mostra duas realidades opostas, ambas cheias de altos e baixos - tudo isso tangenciando uma brilhante teoria de que nossas escolhas condicionam nosso futuro. Pensem bem: se Irina decidisse beijar Ramsey, todo um possível futuro seria automaticamente deletado; caso optasse por resistir à tentação, um outro mar de possibilidades também se secaria. Eu sempre me perguntei como seria saber quais seriam as consequências de nossas ações, e tive essa oportunidade com esse incrível romance.

Se você leu a resenha de "Precisamos falar sobre o Kevin" e se interessou pelo estilo da autora, mas achou o tema - ou a capa! - do livro forte demais, aventure-se com as reflexões desse segundo romance. O amor é um tema de abordagem universal, e torna-se ainda mais interessante quando associado a noções como fidelidade e autocontrole. Prepare-se para uma linguagem apinhada de imagens sempre bem empregadas; prepare-se para um retrato, feito em pontilhismo, das mais sutis emoções humanas e das consequências de nossas escolhas. Entre no livro com uma única história e saia com duas que se entrelaçam, se abraçam, se repelem e se completam. Em outras palavras, conheça uma fábula que põe, em quinhentas páginas, a síntese do que é viver: ter de escolher entre dois caminhos, ainda que os dois pareçam inacreditavelmente ótimos.
Afinal, aquilo sempre fora frustrante: se a pessoa somasse os dois - a disciplina, o intelecto e o autocontrole de Lawrence, o erotismo, a espontaneidade e a entrega de Ramsey -, teria o homem perfeito.
Título: O mundo pós-aniversário.
Autora: Lionel Shriver.
Editora: Intrínseca.
Número de páginas: 542.
Avaliação: 5 de 5.

12 comentários:

  1. Não, eu não li a resenha de Precisamos falar sobre Kevin. Sim, me interessei pelo livro.

    AAAAAAAAAhhhh Surtei aqui. Quero esse livro. Right now!

    Se alguém quiser me dar de presente não me importo....

    "Afinal, aquilo sempre fora frustrante: se a pessoa somasse os dois - a disciplina, o intelecto e o autocontrole de Lawrence, o erotismo, a espontaneidade e a entrega de Ramsey -, teria o homem perfeito"

    Amei *_*

    Beijos

    Gabyh - Linhas incertas

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  2. Nossa, eu fiquei absolutamente, comepletamente, terrivelmente louca pra ler esse livro '-' já achava a capa dele muito legal e mas não tinha ideia do que se tratava e muito menos que tinha esse jeito diferente, essa coisa de dois capítulos de cada, mostrando diferentes futuros! Adoreeeeei *-* E a resenha ficou maravilhosa! Parabéns :D

    Beijos

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  3. Olha, Robledo, na primeira vez em que vi a capa de "Precisamos falar sobre o Kevin", eu achei forte sim, e imaginei que o assunto daria "pano pra manga".

    Mas, enfim... vejo que o estilo da autora é forte, de personalidade e este livro parece ser bem profundo. Vi a capa várias vezes aí, do lado, e não vi nenhuma pista sobre o porquê do título ^^

    Ah, alimentou a curiosidade ♥

    Beijos, amigo!

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  4. Interessei-me pela organização dos capítulos.

    Quando eu crescer quero fazer resenhas iguais às do Robledo. '-'

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  5. Nossa, o livro parece ser muito interessante. Ainda não tinha ouvido falar sobre ele...
    Ótima resenha, como sempre. :)
    Beeijos

    Marina - http://distribuindosonhos.blogspot.com

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  6. Nunca tinha ouvido falar desse livro, e apesar de não fazer meu tipo, a história parece ser legal! Adorei a resenha ^^


    Luiza,
    Express Coffee

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  7. Fico pensando como um desejo aparentemente simples (beijar alguém), se transforma num conflito psicológico intenso... Ao menos que ela fantasie uma nova vida ao lado de outro homem... ^^
    Isso sim seria angustiante para uma uma mulher tradicional e fiel.
    Quero ler esse livro. Fiquei curiosa. ;)

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  8. Cara, acredita que nunca tinha ouvido falar sobre esse livro? Nem visto a capa eu tinha. O_o
    Diferente essa estrutura de narrativa, deu uma vontade absurda de conferir isso agora. haha
    Não sei se o estilo já foi usado por outro autor, só lembro de ter visto algo assim em filmes. =P
    Mais um pra minha lista infinita de compras! =)
    Ótima resenha!
    Abraço!

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  9. Nossa, essa idéia de fazer dois capítulos com com as duas probabilidades, muito inovador e super interessante. Até então eu estava lendo e não imaginando que fosse um livro que me agradaria, mas gostei disso.

    Precisamos Falar Sobre Kevin é um livro que só ouço falar bem, tenho vontade de ler.

    Bjs,
    Kel - It Cultura
    www.itcultura.com

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  10. Sou romantica incorrigivel e tenho muita preguiça de temáticas que tratam principalmente de traição/vontade de trair/trair por pensamento. Sim, eu acredito em traição por pensamento. Acho que se você esté minimamente infeliz, termine: não tem nada que ficar desejando outrem por aí.

    Anyway, apesar disso curti mt a resenha e senti até uma vontadezinha de ler motivada pelo tratamento às emoções humanas no livro, tema ESTE que gosto muito.

    ps: está lendo memórias de uma gueixa, néeee?!?!! Vc vai a-do-rar.


    Bjs!
    http://felizvrosparasempre.blogspot.com

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  11. Ei, esse livro deve ser muito legal! Acredita que nem conhecia! Dica anotada!
    Acho que é a primeira vez que passo aqui, e estou seguindo!
    Também tenho um blog literário e adoro ler!
    Passa lá depois!

    Bjus,
    Náh
    http://www.lerdormircomer.blogspot.com/
    @lerdormircomer

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  12. Nossa Robledo! Que livro louco! rsrsrs
    É louco, mas parece ser bem legal. Eu também adoraria saber os caminhos que uma decisão pode levar. O problema é que uma decisão acaba levando a outra e a outra e no final contar todas as versão ficaria bem complicado, né?
    Mas fiquei interessada no livro. Vou colocar na lista de desejos.

    Caique, sério que você não está gostando? Poxa! Pensei que o livro fosse legal. 2012 está ótimo! Não dá vontade de parar de ler, mas também pode ser porque eu sou apaixonada pelo tema. rsrs
    Em breve vou colocar resenha lá no blog.

    Bjss*
    Gabi Lima
    http://livrofilmeecia.blogspot.com

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