sexta-feira, 11 de março de 2011

[Resenha] Lionel Shriver - Precisamos falar sobre o Kevin

Precisamos falar sobre o Kevin é uma obra-prima.

É difícil sintetizar, em um ou dois parágrafos, a história desse livro. Não que a trama seja exageradamente extensa ou cheia de detalhes, mas o desenrolar dos fatos simplesmente não é a parte mais importante dessa grande produção literária. De qualquer forma, o que acontece é o seguinte: Kevin Khatchadourian, aos quinze anos, assassina nove pessoas em sua escola, em uma espécie de massacre que, na transição entre os séculos XX e XXI, havia se tornado quase banal nos Estados Unidos. Kevin se entrega à polícia, é julgado e condenado a sete anos de prisão; a pena só não é maior porque o crime foi cometido três dias antes de o astuto KK completar seus dezesseis anos e atingir a maioridade penal norte-americana.

Se você quiser ler Precisamos falar sobre o Kevin simplesmente pela trama, não vai encontrar nada além do que eu descrevi acima. É claro que o desenrolar dos capítulos reserva-nos algumas surpresas, assim como o final da trama - mas, em suma, é simplesmente isso que acontece. A mãe de Kevin, Eva, é a mestra dessa narração, e ela fará uma exposição de tudo que aconteceu desde antes do nascimento de Kevin até os dias atuais. Só. Agora, permita que eu o convença a ler o livro mesmo assim.

O livro é todo em forma de cartas. Isso me lembrou muito do formato no qual Goethe estruturou sua obra-prima, Os sofrimentos do Jovem Werther - uma obra que, quando publicada originalmente em 1774, desencadeou uma onda massiva de suicídios na Europa. A narrativa de Precisamos falar sobre o Kevin segue o mesmo modelo: cada capítulo é uma carta enviada por Eva, a mãe do garoto, a Franklin, o pai. As cartas seguem uma ordem consideravelmente linear, narrando os fatos de acordo com a linha do tempo, mas isso não quer dizer que Eva não se dê ao luxo de devanear um pouco, brincar com o presente e com o futuro, com os ses e com os quandos.

Um dos principais pilares da obra é a sinceridade. Todas as cartas são escritas em um compromisso supremo com a verdade, e Eva está disposta a confessar todos os seus pecados e decepções, a colocar no papel tudo aquilo que esteve aprisionado em sua alma por mais de dez anos. Você vai encontrar, por exemplo, uma mãe que confessa não ter sentido prazer algum quando o próprio filho nasceu, ainda que esperasse ser atingida por uma torrente de emoções inigualáveis. A sinceridade intimadora de Eva é sensacionalmente inesperada e inesperadamente sensacional.
"Para ser franca, tem certos dias", lancei um olhar funesto para a janela panorâmica deles," em que eu gostaria que lhe aplicassem a pena de morte. Para acabar logo com isso. Mas essa seria uma saída muito fácil para mim."
Tanto Eva quanto Kevin são personagens extremamente bem construídos. Espectadores de uma relação mãe-filho conturbada desde os primeiros segundos da vida de Kevin, os leitores são convidados a conhecer um garoto astuto, manipulador, assustadoramente estoico, com raros lapsos de humanidade e uma propensão a usar roupas curtas. Do outro lado da mesa, uma mulher ansiosa por experimentar as mil maravilhas da experiência da maternidade, orgulhosa e independente, levemente irônica, cujo seio o próprio filho não quis tocar. A relação entre os dois é tocante, e é impossível não se comover em certas partes do livro.
Quando parei de me revirar para pôr o casaco, ele disse: "Você pode enganar os vizinhos, os guardas, Jesus e a sua mãe gagá com essas visitas de mãe boazinha, mas a mim você não engana. Continue com isso, se quer uma estrela dourada. Mas não precisa arrastar a bunda até aqui por minha causa." Depois acrescentou: "Porque eu odeio você."
Pode parecer que Kevin é apenas mais um adolescente rebelde, indignado com o mundo e com a autoridade dos pais, mas creio eu que não é bem assim. A narração é em primeira pessoa, e isso nos fornece apenas o ponto de vista de uma personagem, mas, ainda assim, a construção de Kevin é tão bem feita e tão sincera que fica difícil duvidar de qualquer uma das palavras de Eva. Franklin, o pai do garoto, é um personagem que não se destaca tanto quanto os outros dois, ainda que suas características fundamentais sejam bastante realçadas. Você vai conhecer um homem que considera os Estados Unidos o melhor país do mundo, que não acredita que seu filho possa fazer qualquer coisa ruim; um romântico, no sentido mais literário da palavra.

No meio do livro, Eva resolve engravidar novamente e acaba por dar à luz Celia, uma garota frágil e corajosa, embora morra de medo de mofo. Mesmo assim, a história continua centralizada na relação de guerra entre mãe e filho, o que permite que você conheça ainda mais a fundo a personalidade de Kevin, ainda que ninguém faça ideia do que se passa por trás dos olhos neutros e da postura negligente do garoto.

Pouco a pouco, tijolo por tijolo, Eva conduz o seu leitor pela trilha de acontecimentos que culminaram no massacre realizado por Kevin. Aliás, falando dessa forma, eu provavelmente dou a crer que o garoto teve uma infância perturbada, cheia de traumas, e por isso suas frustrações acabaram sendo todas liberadas de uma só vez. Mas não é isso que acontece. E essa é justamente a pergunta que move o livro: se Kevin teve uma infância totalmente livre de traumas e relativamente normal, então... Por quê?
Faz muito tempo que me orgulho de meus poderes de navegação porque, na verdade, sou fantástica na hora de traduzir duas dimensões para três e sei usar os rios, as ferrovias e o sol para me situar. (Desculpe, mas sobre o que mais posso me vangloriar agora? Estou ficando velha, e aparento a idade. Trabalho numa agência de viagem e meu filho é um assassino.)
A linguagem do livro é fantástica. Se você está acostumado com livros mais infanto-juvenis, pode ser que tenha alguns problemas com o vocabulário usado por Lionel Shriver, mas eu lhe peço que não desista em decorrência disso. O grande prazer do livro é mergulhar nos devaneios nem sempre claros de Eva, compreender o turbilhão de emoções que é a sua mente, em oposição à névoa misteriosa que cobre os pensamentos de Kevin. A obra é uma experiência de auto-descobrimento: por mais que você não queira, você vai se identificar com Kevin em alguns momentos, e vai torcer para que os raros momentos de humanidade e afeto do garoto se prolonguem.
É justamente quando ela menos merece que mais a criança precisa do nosso amor.
Da mesma forma, você vai sentir raiva de Franklin, o pai do garoto, sempre que ele se colocar ao lado de Kevin, defendendo-o com unhas e dentes, ainda que a culpa de KK por algo seja inegável. Por Eva e por Kevin, você vai sentir pena e remorso, compaixão e ternura, raiva e agonia; a relação dos dois é um mistério para mim até agora, e não sei se algum dia virei a compreendê-la por completo. E é justamente esse o brilhantismo da obra: o detalhar antitético e não linear das emoções humanas, a viagem por dentro das mentes, a luta contra uma sinceridade assustadora.

Eu disse e repito: Precisamos falar sobre o Kevin é uma obra-prima de auto-descobrimento, auto-questionamento e auto-contemplação. Permita que o livro lhe mostre a alma de um assassino e sinta pena e admiração por ele. E acredite em mim quando digo que você pode finalizar a leitura e sair do universo de Kevin, mas ele não sairá do seu por um bom tempo.

Título: Precisamos falar sobre o Kevin.
Autora: Lionel Shriver.
Editora: Intrínseca.
Número de Páginas: 464.
Avaliação: 5 de 5.

16 comentários:

  1. Oiiiiiiiiiiiiiiiiiiii!
    Então, que resenha perfeita em???
    Tipo, quando eu vi o tamanho eu falei: será que eu consigo?
    E aí eu consegui, pq a leitura fluiu direitinho, parecia até uma página de livro, auhsuaus *_*
    Bom, sua resenha superou minhas expectativas, vc sabe como eu estava ansiosa por ela né?!
    Agora, preciso mais ainda do livro!
    Mesmo que eu esteja procurando por algo engraçado...
    Precisamos falar sobre o kevin parece especialmente perfeito xD
    E eu gostaria muito de entender o pq... Já que não foi um trauma ou uma revolta.
    Seria ótimo se eu conseguisse entender. Acho, na verdade, que cada um entende a seu modo. E olhe lá x)
    Aí, vc acaba achando um trauma que existe em vc, e não no Kevin... é uma ideia meio louca, mas, para mim, faz sentido.
    Eu já falei que gosto muito da capa.
    Ela pode ser feia ou qualquer coisa, mas, chama minha atenção!
    Essa foi sem dúvidas, a sua melhor resenha até agora.
    E foi a que mais me deixou com vontade de ler!!!
    Agora preciso urgentemente deste livro...
    E a culpa é sua, hahahaha.
    Adorei os trechos que você usou!
    Principalmente essa:
    "É justamente quando ela menos merece que mais a criança precisa do nosso amor."
    Parabéns pela resenha, melhor impossível ;)

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  2. juro que se tivesse outra capa eu comprava esse livro, juro que esse menino me da medo. =/

    A ultima frase q vc destacou eh bem interessante mesmo, e bem verdadeira.
    bju
    letracomasa

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  3. Também estava ansioso por esta resenha Mayara, a capa me chamou muito a atenção e eu até agora quero saber o porquê do Kevin ter uma cabeça de gato no lugar da própria cabeça, embora tenha minhas teorias.
    Realmente, a resenha é por completo estrutural e verbalmente perfeita, mesmo não tendo lido o livro, só por esse texto já estou pensando na história, nos porquês e tudo mais. E para você dar nota 5 de 5, tem que ser bom mesmo õ/

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  4. Essa capa definitivamente ME ASSUSTA. E apesar de não parecer o tipo de livro que eu leio, acho que ele pode ser legal. Mas sigo com medo da capa, rs.

    Luiza,
    Express Coffee

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  5. Eu geralmente não tenho paciência pra ler resenhas muito grandes, mas a sua está incrível!
    Fiquei ainda mais curiosa. E eu realmente adoro essa capa. Me lembra do garoto d'O Orfanato, com um saco (de batata?) na cabeça.

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  6. Oi Robledo!
    Ótima resenha, já tinha visto esse livro mas não sabia muito bem sobre o que se tratava.
    Mas a capa dele me dá medo! hehehe
    Beijos

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  7. Nossa, que resenha!!!
    O livro já está na minha meta desse ano e me aguarda na estante aqui de casa. Li alguns capítulos e a narrativa impressiona pq é um assunto no mínimo delicado!
    Parabéns pela ótima resenha!^^

    http://animaelibri.blogspot.com/

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  8. Uau! Amei a resenha!
    Quando vi o título do livro não fiquei muito interessada, se bem que a capa me deixou bastante curiosa, mas agora que sei a história preciso ler esse livro. Ele parece ser realmente bom. Só pelo jeito como você o descreveu já acendeu a minha vontade de ler e descobrir um pouco mais sobre o Kevin e todos os seus problemas.
    Para mim parece incrível que através de um livros consigamos sentir pena de um assassino, o que não deve ser nada fácil fazer.

    Bjss*
    Gabi Lima
    Livro, filme e cia

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  9. Ótima resenha, muito bem escrita, mto profissional, além de ter acabado de me vender o livro. Pelo que vc tinha me falado dele, eu já tinha ficado com vontade de ler, mas agora vou fazer uma força extra pra ler. Não sei bem se esse é o tipo de leitura que eu gosto, mas não se pode tratar com menoscabo um tema como esse, acho q vale a pena ler ao menos para poder falar mal depois, como diz meu pai sempre hehehe. Ainda bem q consegui ler sua resenha no cel, pq to sem pc agora, mto boa, parabens. @mchristo0

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  10. Sei que todos os outros comentários falaram sobre isso, porém ressalto: passei por vários, vários blogs ultimamente (você não faz noção de quantos), li inúmeras resenhas e a sua foi a que mais me impressionou, de todas as formas possíveis. A começar - fique claro que não é um preconceito - que estou admirada pelo fato de um blog literário sério e de ótimas resenhas ser comandado por dois garotos. Asseguro, novamente, que não é preconceito, mas algo simplesmente notável na blogosfera, levando em consideração a presença em massa feminina. Isso, sem sombra de dúvidas, confere pontos a vocês. Credibilidade. E a qualidade do trabalho que aqui encontramos... Há muito tempo que não leio algo parecido.
    Prezo muito o uso da linguagem padrão, da coesão e da coerência e, admito, não gosto muito de ler postagens com erros ortográficos. Já deixei de seguir blogs por alguns erros, talvez não grandes, entretanto que foram o suficiente para me desagradar. E aqui, lendo as outras postagens, eu simplesmente não vi isso.
    Quanto ao livro, ele me dá uma espécie de medo. A capa, a história. Ainda que eu tenha tido ultimamente uma tendência para assuntos mórbidos e assassinos - estive lendo O Perfume e a sua descrição de Kevin em muito condiz com o famoso Grenouille -, algo me repelia a essa leitura. Talvez a capa, talvez o título que sugere aquela "seriedade simples", talvez o próprio medo da personagem em si. Agora, todavia, lendo a sua resenha, como o colega acima, simplesmente senti que o livro me foi vendido. Todos os detalhes bem relatados, personagens bem explorados e uma maestria ímpar ao conduzir o artigo de opinião... Adorei, adorei de verdade!
    Não sou de rasgar elogios, mas acho que aqui foi merecido. Estou seguindo o blog e aparecerei aqui sempre que possível para observar o desenvolvimento do trabalho de vocês.

    Os meus mais sinceros parabéns,
    Ana

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  11. Sinceramente, nunca tinha ouvido falar desse livro, até minha mãe (fã de livros que tenha serial killers ou massacres) Talvez minha mãe sugerindo que eu pelo menos procurasse informações sobre o livro para que eu mudasse meu gênero favorito de leitura não tenha sido completamente em vão. Precisamos falar sobre o Kevin parece ser meu tipo de livro, e sua resenha me convenceu a dar uma chance a ele. Uma ótima resenha, by the way.

    Laís Aranda, de World of Carol Espilotro

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  12. Gostei muito da resenha, mas ainda não me sinto atraída para ler o livro. =X

    Tarsila
    DeSaLiEnAnDo

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  13. Total desatenção minha! :O Eu vi uma divulgação do livro Precisamos falar sobre o Kevin ao final de algum livro, fiquei muito interessada na história e nem me dei conta de que a autora é a Lionel :O

    Tenho o Dupla Falta para ler, que ganhei aqui no blog :D

    K-h-a-t-c-h-a-d-o-u-r-i-a-n carambaaaa "sobrenomão" hehehe
    "Quase" banal nos EUA?! Carambaaa mesmo, só de ínicio a resenha conseguiu me deixar intrigada a respeito do enredo.

    "uma mãe que confessa não ter sentido prazer algum quando o próprio filho nasceu" Uia, isso é um problema sério, coloca sinceridade ao extremo.

    Estava lendo suas quotes e divagando, livros assim mexem consideravelmente com nossas emoções e nos fazem ficar remoendo partículas da história após o término da mesma.

    Leitura forte com certeza em todos os sentidos. Belo texto Robledo! É raro encontrar ótimas resenhas, ainda mais sobre livros desse gênero. Acredito que você consegue perfeitamente nos passar a essência do livro e, consequentemente, gerar uma fome voraz de "devorar" a obra.

    Beijos
    Babih Hilla
    http://revolucionandogeral.blogspot.com

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  14. Amigo, quando você teceu todos aqueles elogios a Shriver tinha um grande motivo, hein?

    "É justamente quando ela menos merece que mais a criança precisa do nosso amor." Esta frase me chamou muito a atenção e ainda martela na minha cabeça.

    Não creio que já vi, li e ouvi todos os casos sobre ataques a escolas. Mas sei de alguns e sempre procuro ler as matérias com atenção aos detalhes, porque é aí que está o perigo. Por mais que o momento da tragédia seja terrível para as famílias que perderam filhos, sobrinhos, enfim, seus pequenos amores, meu foco inevitavemente se volta ao autor da ação, aos motivos que o levaram a isso, as raízes soltas no passado. Foi o que me fez desejar o livro. Em muitos casos, a razão está no bullying na própria escola; eu particularmente não lembro de ter visto algum envolvendo os pais do autor, embora tenha certeza de que existem muitos mais do que chegamos a saber. Acredito que a autora encontrou um terreno amplo para explorar - a própria casa, o berço da formação (ou deformação, na falta de um termo melhor) do caráter de uma pessoa.

    Mal posso esperar meu livro chegar e ler. Ansiosa demais, ainda mais do que quando vi a capa e a sinopse da primeira edição!

    Beijo, amigo, e parabéns novamente. A resenha está perfeita o/

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