segunda-feira, 21 de março de 2011

[Resenha] Flavia Cristina Simonelli - Paixão e Liberdade

Paixão e Liberdade é uma das minhas poucas experiências com a literatura não clássica de origem brasileira. Conforme foi dito aqui, a Flavia Cristina Simonelli, autora do livro, concordou em me enviar um exemplar para resenha. O livro chegou aqui, autografado, na última quinta-feira (17), e hoje eu disponibilizo a vocês a minha opinião acerca da obra.

O livro conta duas histórias que se diferem e se entrelaçam: Camila e Isabel, amigas de universidade, se reencontram após vinte anos de absoluto silêncio. Isabel, a narradora da obra, recebe um telefonema de sua antiga amiga e o encontro das duas moças, agora com mais de quarenta anos cada uma, acontece pouco tempo depois. O livro, essencialmente, descreve tudo que aconteceu nesse meio-tempo de afastamento, quando uma das mulheres sequer sabia se a outra estava viva ou não. É claro: muito mais importante do que os fatos que são apresentados ao leitor, a forma e o estilo de apresentação merecem um destaque formidável, ainda que algumas críticas devam ser feitas.

A primeira história a ser contada é a de Camila. Poderosa e jovem executiva, com uma carreira firmemente estabelecida na área do marketing, Camila nos é apresentada, inicialmente, como alguém cujos principais conflitos são relacionados a questões empresariais ou de trabalho. É singular o trabalho que podemos observar já nos primeiros capítulos da trama: contra uma Camila ingênua - diria eu -, Flavia Simonelli faz com que se choque o monstruoso gigante da ganância moderna, e a desconstrução da personagem tem início justamente aí. Sufocada por um mundo onde a vaidade impera e as aparências governam, Camila busca refúgio em uma vila tranquila na Irlanda, ao lado de uma parteira chamada Anna, que muito tem a lhe ensinar sobre a vida.
Minha mente voltou aos anos de faculdade, quando meus sentimentos por Camila eram paradoxais, incoerentes: misturavam cumplicidade e raiva, admiração e inveja. Ela era dessas amizades que perduram na memória com uma resistência quase cristalizada, que repentinamente rompe a distância do tempo cronológico e se torna presente vivo.
Isabel, por outro lado, é a narradora da história e tem sua história bem mais focada nas relações românticas. Tendo passado por uma viuvez e uma separação, sua mente é um turbilhão de emoções contraditórias e seus anseios de compreensão são destinados a um ponto bastante interessante: as ambições artísticas. Isabel é a personagem que encontra prazer na escrita e que compartilha, com seu leitor, todas as sensações típicas de quem está disposto a doar sua alma às palavras, permitindo que estas o conduzam por um universo desconhecido. Com o desenrolar do livro, a história de Camila recebe mais atenção do que a de Isabel mas é com as palavras da hábil escritora que o encerramento da obra é construído.

Ainda que muitas coisas sejam brilhantes na constituição da obra, há elementos negativos que precisam ser realçados, e eu prefiro começar com as más notícias para finalizar com as boas. Não sei se o tamanho final do livro é a consequência ou a causa desses empecilhos, e não cabe a mim a tarefa de julgar tal questão. O que acontece é o seguinte: Paixão e Liberdade tem, aproximadamente, 180 páginas - o que, creio eu, é pouquíssimo, principalmente em um livro no qual a filosofia assume um papel de destaque. Em virtude disso, há passagens onde o pensamento profundo é praticamente jogado sobre o leitor, e há reações exageradamente românticas, por assim dizer, a fatos comuns. O livro tem uma narrativa rápida, ainda que uma obra reflexiva exija um tom mais lento e pensativo, o que impede o leitor de absorver completamente as mensagens transmitidas. Quando, por exemplo, Katherina está tendo seu bebê, o seguinte diálogo acontece:
- Você é uma mulher forte, vai ter o seu bebê com a força que toda mulher tem dentro de si!
- Não tenho nem forças para olhar para minha vida. Meu futuro. Qual será meu destino?
- O destino se apresenta e nos mostra o caminho certo quando mantemos a tranquilidade interior - respondeu Camila.
- Mas tenho muito medo, não sei para onde vou.
- O medo do futuro não nos serve para nada. Não estamos no futuro. Estamos aqui e agora, único momento em que podemos fazer algo por nós.
Aliás, até mesmo a velocidade com que as coisas acontecem incomoda um pouco. Em 51 páginas de livro, Isabel já tem três amores vividos, e parece ter a capacidade de se (des)apegar com uma rapidez que não é comum a muitos seres humanos; isso faz com que o leitor tenha pouquíssimo tempo para se deixar envolver pelas características e traços de um personagem específico, transformando a mensagem de Paixão e Liberdade em algo superficial, ainda que a intenção seja claramente outra. Não me levem a mal: os ensinamentos transmitidos ao longo do livro são interessantíssimos e realmente estimulam a reflexão, mas a velocidade e o contexto nos quais tais ensinamentos surgem chegam a ser irritantes, em algumas situações. Há personagens que simplesmente aparecem, do nada - como uma senhora passando na rua ou um médico -, transmitindo preciosas lições de vida, o que sintetiza capítulos inteiros em uma única frase de análise: é bonito, mas inverossímil.

Contudo, conforme eu disse no parágrafo de introdução desta resenha, alguns recursos de linguagem e de estilo merecem destaque. A ironia, por exemplo, ainda que não usada o tempo todo pela autora, surge de forma sensacional quando lhe é permitido dar as caras. Quando isso acontece, o livro assume um tom levemente ácido e crítico, que de certa forma lhe garante autoridade. Eu gostaria muito de ter visto esse recurso com mais frequência na obra, mas entendo que o principal objetivo de Paixão e Liberdade é estimular a reflexão, enquanto a ironia surge, ocasionalmente, em segundo plano. Por exemplo, quando o chefe de Camila, sr. Richard, envolve-se sexualmente com ela, mesmo sendo um homem casado, Flavia Cristina Simonelli nos presenteia com o seguinte parágrafo:
Misturada entre a dor e a intensidade do prazer, Camila permaneceu ali, ao chão, sem forças para se erguer, enquanto Sr. Richard arrumava-se para sair. Sua mulher e seus filhos o aguardavam para o jantar.
O outro recurso ao qual eu quero apontar os holofotes é provavelmente o mais bem trabalhado e mais belo de todo o livro: a metalinguagem. Sendo uma narradora que é também escritora, Isabel dispensa grande parte de seu discurso à exaltação da arte como forma de elevar a condição humana à plenitude, ainda que a missão do artista não seja fácil. Algumas das passagens mais incríveis do livro são justamente sobre isso, e ficou difícil selecionar um quote específico que pudesse representar esse recurso estilístico, mas acredito que o trecho abaixo representa muito bem a habilidade da narradora na questão metalinguística / artística:
Mas a arte precisa encontrar seu renascimento por meio do homem. Do homem livre. Pois a arte tem sua tarefa celestial e depende das mãos do artista, o parteiro, aquele que a traz entre o limiar da consciência e da loucura. O artífice no mundo terreno das coisas mais sublimes, que carrega o peso de seus conflitos. Pode confundir-se com sua obra e morrer no fogo das vaidades, pois aquele que vem ao mundo para seguir o caminho da arte, vem para testar a si mesmo diante das maiores tentações. Mas pode lapidar-se para receber ideias elevadas, ideias muito maiores do que ele mesmo e que, com humildade, lhes dá forma expressão. E assim, ao sacrificar suas forças subjetivas, o artista sublima a linguagem humana e encontra seu próprio renascimento.
A conclusão a que eu chego é a seguinte: trata-se de uma obra instável. Em alguns momentos, cheguei a afastar o livro e respirar, tamanha minha impressão negativa frente a reações de alguns personagens ou a cenas demasiadamente rápidas ou filosoficamente desnecessárias. Em outras, eu me via completamente deslocado do ambiente ao meu redor, absorto nas palavras de Isabel, quase flutuando em uma meditação que só a leitura é capaz de proporcionar. Flavia Cristina Simonelli me mostrou, em Paixão e Liberdade, que possui uma capacidade - ainda não totalmente explorada - de transportar o leitor por dimensões desconhecidas, mas nem por isso desconfortáveis. Espero, com toda sinceridade, que ela lance um livro no mesmo estilo, mas com duzentas ou trezentas páginas a mais. Aí, sim, teremos uma obra-prima.

E um aviso: não é autoajuda.

Título: Paixão e Liberdade.
Autora: Flavia Cristina Simonelli.
Editora: Novo Século.
Número de Páginas: 180.
Avaliação: 3 de 5.

14 comentários:

  1. Esse livro não me chamou muita atenção, uma amiga minha o ganhou e eu fiquei bem curiosa, tenho que assumir e sua resenha me deixou mais ainda! Mesmo com esses probleminhas de ser rápido algumas horas ( E isso me incomoda bastante ) mas ainda acho uqe posso pegar pra ler um dia :DDD

    Beijos! Seguindo ;)

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  2. Curiosidade dobrou de tamanho ..!!
    rsrs'

    http://corujalblog.blogspot.com/

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  3. Resenha ótima!
    Jura que aconteceu esse diálogo no momento em que alguém estava tendo um bebê?!
    Não fiquei com vontade de ler, li várias outras opiniões negativas.

    =*
    Tah

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  4. Este tipo de livro não me atrai muito, mas adorei a resenha e tenho que dizer que achei a capa muito linda.
    Robledo, acho que deveria dar mais uma chance a Percy Jackson. A série é incrível.
    Mas é você quem sabe... Adoro suas resenhas, mas cheguei a conclusão de que temos estilos literários bastante diferentes. uashsausah :D
    Beeeijos

    Marina - http://distribuindosonhos.blogspot.com

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  5. Amei a resenha,refletiu bem o conteudo do livro.
    Muito bem escrita.
    Gostei muito,
    Beijos!
    by Carla

    www.blogmeureino.blogspot.com

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  6. Oi ^^
    Seguindo vocês também, moços!
    Pois bem, gostei muito da sua resenha, especialmente quanto aos pontos "negativos" ressaltados. Eu sou do tipo de pessoa que tem que conhecer a fundo pra poder comentar =)

    Por isso, adianto que foi uma senhora resenha... mas quando terminar de ler, devo voltar aqui pra comentar de novo, com conhecimento de causa hehehe.

    Beijos e sucesso =*

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  7. Nossa, que resenha! rsrs Fechamos parceria com a Flávia e devo estar recebendo o livro em breve. Já vi muita resenha boa sobre ele, mas a sua está excelente! É uma pena mesmo que seja tão fino...

    A vontade de ler dobrou de tamanho agora. Parabéns pela resenha!

    Bjs,
    Kel - It Cultura
    http://www.itcultura.com

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  8. jah tinha lido sobre o livro mas ele não chamou muito a minha atenção, gostei da resenha!^^

    --
    hangover at 16

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  9. Não é um livro que me chama atenção... Até pela temática ser um pouco diferente do que estou focada no momento... Mas ainda assim, gostei muito da sua resenha. Realmente, quando o livro corre com certas coisas gera um incomodo.

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  10. Uau, que resenha! Muito bem escrita e muito sincera. Amei! Acredito que devemos ser sinceros e construtivos ao fazermos nossas resenhas e vc conseguiu isso, Ro. Parabéns!

    Eliane (Leituras de Eliane)

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  11. Oi, adorei sua resenha e o livro é excelente na minha opnião. Já li e resenhei em meu blog também, e achei bem filósofico e ensinador! Seguindo o blog, segue o meu também.

    Caa Oliveira
    Open Mind
    www.openmindbook.blogspot.com

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  12. Hm... dependendo do momento, livros rápidos me alegram bastante, ou seja, naqueles momentos que quero mais me divertir e ler um livro por ler mesmo... Paixão e liberdade parece ser esse tipo de livro, ler sem esperar muitas coisas, mas, no fundo, garantirá certa diversão para o leitor!
    Gosto muito de livros desse tipo quando tenho pressa :D
    Outra ponto legal foram essas frases reflexivas, marcantes, adoro livros assim xD
    Acho que gostaria bastante de paixão e liberdade :D
    Parabéns pela resenha, perfeita ^^

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  13. Olhaaa.. os meus chegaram ontem! Mas lerei sua resenha depois de fazer a minha, tá? Pra não me influenciar, haha

    Beijos!

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  14. TÁ VENDO?? Por isso que eu não quis ler sua resenha antes da minha, hahahaah... com autores parceiros a responsabilidade de trazer um olhar próprio e autentico sobre a leitura é maior. Afinal, ele investiu 1 ou 2 livros no nosso blog. E eu SABIA que você ia acabar percebendo coisas semelhantes às minhas percepções! SABIA. É muito engraçado isso, por que a gente é SUPER diferente. Voucê odeia os livros q eu leio, e eu nunca tive interesse nos que você adora. O meu estilo de escrita é mais leve, mais descompromissado, mas fast reading. Enquanto eu gosto de fazer textos que dêem a impressão da minha experiência de leitura e coloque algumas questões para reflexão, você faz reflexões profundas, complexas e fenomenais. Não vejo melhor ou pior, apenas diferenças. Apesar disso, a gente concorda em MUITAS coisas (exceto na qualidade do pronome de tratamento "moça" hahaha), em muitas áreas - da ética blogueira até pontos positivos e negativos de livros. ADOREI a sua resenha, e concordo com quase tudo. Também tive momentos de flutuação revesados por momentos de absoluto ódio pela reação de alguns personagens. ME EXPLICA a reação do Nathan no final? Foi o que mais me tirou do sério, discuti um tempão com o Rodolfo (meu namorado) sobre a inverossimilhança dessa reação. E, apesar disso tudo, adorei as reflexões dela, a realidade/possibilidade da história na sua essência.

    Ah, e eu admiro MUITO as análises q vc faz, viu? Seu blog está cada dia melhor. Faça letras ou jornalismo, ok? Vc vai longe - não é uma aposta, é uma certeza.

    Beijos, querido.
    ps: e sim, eu continuarei lendo suas resenhas de autores parceiros depois de fazer as minhas, pra evitar que nossos olhares similares gerem resenhas idênticas.

    http://felizvrosparasempre.blogspot.com

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